Este artigo tem como objetivo delinear os discursos e as práticas em torno da noção de responsabilidade no campo da saúde mental, tendo em vista o processo de negociação, divisão e delegação de encargos pelo cuidado entre profissionais, familiares, usuários e membros da comunidade. A "tomada de responsabilidade do serviço pelo território" é um desses discursos. A construção de "técnicos de referência" nos Centros de Atenção Psicossocial se torna exemplar dessas mudanças. Vê-se como as práticas relativas ao engajamento, ao vínculo e à implicação são técnicas cujas funções terapêuticas e administrativas são articuladas.
No contexto da consolidação da Reforma Psiquiátrica Brasileira e do Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário, as pessoas em medida de segurança e os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico apontam para um desafio à efetivação dos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde. A descrição e análise do Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (PAILI-GO) são uma estratégia para delinear os limites e possibilidades de construir ações e serviços de saúde para essa população vulnerável. Uma visita a esse programa permitiu notar a potencialidade de multiplicação dessa experiência governamental em âmbito estadual, capaz de extinguir a medida de segurança de uma parcela de seus participantes, contribuindo assim para um processo de reinserção social imerso em ações intersetoriais.
Tendo em vista o processo paulatino de responsabilização de atores e instâncias sociais pelo cuidado no contexto da Reforma Psiquiátrica brasileira, percebe-se que familiares e vizinhos de pacientes psiquiátricos têm sido instigados a " participar" da política pública, principalmente no lugar de " suporte social" , embora oficialmente considerados " parceiros" . Essa reconfiguração da relação entre Estado e sociedade civil é consagrada pela diretriz governamental de tomada de responsabilidade dos serviços pelo território, uma mudança da lógica de demanda e oferta de atendimento no sentido de estimular serviços extra-hospitalares - como os Centros de Atenção Psicossocial, campo desse estudo - a se encarregarem pela população adscrita a uma área geográfica. O objetivo desse texto é investigar as tecnologias psicossociais produzidas nesse contexto político, institucional e histórico específico, tais como a mediação de trocas sociais e a arbitragem de conflitos. Um dos materiais analisados são os registros em prontuário, que podem constituir os atores e instâncias sociais citados como envolvidos no campo da saúde mental, enredando-os na malha administrativa construída como rede de suporte social.
Considerando as contribuições das ciências sociais para a compreensão da assistência psiquiátrica, que destaca a passagem de pessoa a paciente como crucial na carreira moral do doente mental, visamos investigar outro destes momentos que alimentam o debate acadêmico sobre doença e identidade social: de paciente a “causo”. Com base em uma perspectiva socioantropológica sobre a vida de egressos de internação psiquiátrica, um trabalho de campo foi conduzido de 2007 a 2010, junto a usuários de uma rede de atenção, seus familiares e vizinhos, destacando não só as categorias administrativas para designá-los entre os profissionais da rede, como também as utilizadas pelos habitantes da cidade. Notamos em que medida alguns habitantes são considerados “doidos”, mesmo sem terem sido “pacientes” da casa de repouso local; ora “usuários”, por terem sido matriculados em estabelecimentos da rede; ora “clientes”, por sua frequência no mesmo; “bonequeiros”, “nervosos” e “barulhentos”, por seu comportamento em público, alguns deles sendo objeto de comentário nas ruas da cidade e virando “causos”, e outros sendo objeto de discussão nos estabelecimentos de saúde e tornando-se “casos clínicos”. Portar transtornos mentais é tão relevante no manejo da identidade social estigmatizada quanto portar sobrenomes e apelidos.
Resumo O abandono de mulheres no cárcere tem sido documentado por pesquisadores do Brasil. A ausência mais apontada é dos homens que têm parceiras encarceradas. Não por acaso, nenhuma pesquisa específica sobre esses sujeitos foi encontrada na literatura nacional e internacional. Visando suprir, em parte, essa lacuna bibliográfica, foram investigados os cônjuges que frequentam duas penitenciarias femininas em dias de visitas. Através das lentes de gênero, buscou-se compreender os significados atribuídos por eles para manutenção dos relacionamentos com as companheiras presas. Para isso, realizou-se uma etnografia nas filas de espera das prisões. Na coleta, foram identificados 26 homens companheiros que regularmente frequentam o cárcere feminino em dias de visitas, dos quais quatro foram entrevistados. Embora o número encontrado ainda seja tímido, permite problematizar a categoria “abandono” na cadeia de mulheres. Acerca das trajetórias dos entrevistados, observa-se o exercício simultâneo das masculinidades hegemônica e não hegemônica. Todos são homens provedores, financeiramente estáveis e consideravelmente mais velhos que suas parceiras. Paralelamente, os quatro eram, de algum modo, cuidadores antes do encarceramento de suas companheiras. Para eles, a visita na prisão feminina representa amor, dever e cuidado. Ao mesmo tempo, entende-se que essas relações representam a possibilidade de exercício de controle e poder masculino sobre essas mulheres presas, visto que todas elas têm vidas marcadas por fragilidades familiares e sociais.
Resumo: Os estudos sobre dias de visitas no cárcere são focados quase exclusivamente nas mulheres que realizam essa atividade em instituições prisionais masculinas. Com o objetivo de ampliar as análises sobre tema, procuramos, no presente manuscrito, investigar diferentes parcelas de frequentadores do cárcere feminino que performatizam o gênero masculino. Por meio de uma pesquisa etnográfica conduzida nas fronteiras externas de duas prisões de mulheres, 50 homens se tornaram interlocutores, a maioria deles familiares das privadas de liberdade. Como resultados, observamos a produção discursiva dos visitantes acerca da conjugalidade e do cuidado carcerários, como também o exercício do apoio masculino nas margens das cadeias. Tais achados permitiram análises comparativas com estabelecimentos penais masculinos, apontando para novas questões de gênero envolvidas no fenômeno das visitas em prisões.
Resumo Com o objetivo de compreender um caso de internação psiquiátrica compulsória (IPC) infantojuvenil, foi desenvolvida uma etnografia com agentes institucionais dos setores educação, justiça e saúde nos poderes executivo e judiciário. A metodologia de pesquisa consistiu em (1) entrevistas com defensoras, psicólogas, psiquiatras e peritos; (2) análise documental de ata escolar, autos processuais e prontuário médico. Frisamos que algumas pesquisas têm se centrado em “adolescentes drogaditos” internados compulsoriamente, apontando para uma “judicialização do cuidado em saúde mental”. Desse modo, visou-se responder à seguinte questão de pesquisa: as IPC às quais Clara fora submetida também poderiam ser compreendidas como parte desse processo? Procurou-se mostrar que a jovem é caracterizada pelas versões institucionais como uma “adolescente-psiquiátrica” por alguns, e “um risco para si e para terceiros” por outros. Assim, torna-se um “caso emblemático” para uma rede de cuidados, após episódios de “agressão”, “tentativas de suicídio” e “fugas” que suscitaram audiências, encaminhamentos, internações e abrigamentos. Por fim, os resultados apontam para um processo de juridicização engajada da adolescência.
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