Tendo como ponto de partida uma comparação entre modos de fazer e pensar a feitiçaria num contexto ameríndio e em algumas casas de religião de matriz africana no Brasil, o artigo propõe uma conexão entre o que, para a economia do argumento aqui apresentado, defini como “os mundos do axé” e “os mundos perspectivistas” ameríndios. A hipótese desenvolvida é que, mais do que uma concepção do mundo, o que pode ser comparável nos universos ameríndios e nas religiões afro-brasileiras<br />é uma concepção do conhecimento. Com isso não se pretende afirmar uma natureza comum desses coletivos, mas observar como, <em>em contraste com nosso regime de pensamento</em>, parece ser possível falarmos de um pensamento afroindígena – algo que só seria comum, pois, em oposição a certo aspecto de “nós”.
Tradução Morgane Avery Transcrição Rev. Antropol. São Paulo, Online, 59(2): 155-186 [agosto/2016] 156 conversações com Isabelle stengers Introdução: uma pensadora trickster Da química à história da química e da física. Da historiografia à filosofia. Da filosofia à bruxaria e de volta às ciências e à política. Ou melhor, à cosmopolítica, caracterizada por nossa autora em sua obra cujo nome carrega esse neologismo, que se coloca como alternativa à ideia de um cosmopolitismo kantiano/habermasiano. Eis um resumo não autorizado de Isabelle Stengers, pensadora belga sediada na Universidade de Bruxelas e que figura entre as mais destacadas da intelectualidade contemporânea. E de tal monta que se tornou muito difícil não passar por ela quando se trata de enfrentar os problemas candentes da atualidade a partir das relações entre ciência, política e mercado industrial. Que o digam Bruno Latour, Eduardo Viveiros de Castro, Donna Haraway, Vinciane Despret e tantos outros e outras. E que o diga também a antropologia. Ou pelo menos aquela interessada em despertar dos sonambulismos disciplinares-institucionais e deitar atenção sobre fenômenos de simbiose e amálgama entre domínios que mais e mais perdem suas antigas barreiras de proteção e isenção.Como se mover em realidades que atravessam produções científicas, interesses políticos e desideratos mercadológicos? Como romper fronteiras ao mesmo tempo em que atendendo à "restrição leibniziana", esposada pela autora, que afirma honrar a produção do conhecimento que não ofenda, sem mais, os "sentimentos estabelecidos"? Como fazer a crítica interna às ciências sem com isso atar-se à inconsequente clausura internalista do domínio científico? Como, enfim, trazer as ciências de suas torres de marfim e pô-las em presença de suas consequências? As ciências serão capazes de enfrentar as novas objeções e provações que vão emergindo, não raro violentamente, em domínios obsoletamente ditos não-científicos? Como fazer com que as "perguntas viajem" para além das interrogações oficiais de cada nicho ou ecologia de conhecimento? A antiga Razão saberá concatenar-se com as novas razões para fundar ou assumir as novas objetividades?Que não se espere de Stengers uma solução normativa, geral e abstrata "de uma vez por todas", mas sim sempre rente aos "acontecimentos" e "aventuras" que se singularizam "a cada vez", para aqui retomarmos essa oposição -de uma vez por todas versus a cada vezque ela e Prigogine tanto reiteram em A nova aliança -metamorfose da ciência, de 1979. Em todo caso, é a própria velocidade da produção científica (que vinha e segue acompanhando a velocidade autocentrada da lógica de mercado) que aí mesmo se vê afetada e desafiada. Mas desafio sistêmico, porque toca aos próprios hábitos de pensamento e prática constituídos pela modernidade que, nos termos de Latour, purificou-se entre ciência e política como condição Rev. Antropol. São Paulo, Online, 59(2): 155-186 [agosto/2016] cOnveRSAçõeS cOm ISAbelle StengeRS 157 para acelerar, sem tabus, o trânsito entre ciência e política. Trâns...
No abstract
Os afetos atravessam o corpo como flechas, são armas de guerra (Deleuze & Guattari 1997[1980:18).Um conhecido mito de origem xinguano, do qual apresento aqui uma versão aweti, conta que os povos do alto Xingu, bem como os brancos e outras gentes que habitam o mundo atual, foram criados a partir das flechas confeccionadas pelos gêmeos demiurgos Sol e Lua para matar seu pai, a onça Itsumaret, e assim vingarem a morte de sua mãe, Tanumakalu, que havia sido morta por sua sogra jaguar. As flechas confeccionadas pelos demiurgos foram por eles transformadas em pessoas e, depois de efetuarem uma chacina na aldeia das onças, receberam dos gêmeos diferentes armas e utensílios, que se tornaram os artefatos distintivos de cada povo hoje existente. Sol queria que os índios recebessem as armas de fogo, mas estas eram tão pesadas que eles não puderam manejá-las, e preferiram tomar para si as bordunas e as flechas, deixando para os brancos as espingardas. Nessa mesma ocasião, os índios xinguanos receberam dos demiurgos o feitiço, tupiat, arma extremamente letal que, assim como a ausência das armas de fogo ou a presença de certos utensílios, tornou-se um distintivo desses povos. Não que os demais não tivessem adquirido seus próprios instrumentos de malefício mágico, mas adquiriram feitiços diferentes.Sol e Lua, contam os Aweti, eram grandes feiticeiros. Ainda crianças, inventaram uma forma de atrair animais selvagens para destruir a roça de seu próprio avô, que lhes negava comida. Depois de grandes, tomados de ciúme, pois cada um acreditava que sua esposa o traía com o irmão, inventaram o feitiço "amarrado" e se enfeitiçaram mutuamente, por vingança. Por inveja, um sentimento identificado ao ciúme na língua aweti -temyzotu designa tanto o desejo de obter aquilo que pertence ao outro quanto o medo de perder aquilo que é seu -cada um enfeitiçou o filho do outro, e é por
Taking as a starting point an apparently minor event during my fieldwork—the fact that I received an indigenous name from the Aweti, a Tupi-speaking people who inhabit the upper reaches of the Xingu River—this article explores how personal qualities are elicited through names. A presentation of the Aweti onomastic system will highlight its analytical potential to interpret not only the case in question, but also a native theory of descent centered on the familial transmission of chiefdom. Personal names emerge as a way of producing people by evoking specific relations, while simultaneously particularizing the named person. Making a difference from what she or he was before having it, a name operates as a counter-identity device at the same time that it engenders identity qualities.
Parece ser comum aos pesquisadores da área a percepção de que o Alto Xingu, conjunto multilíngue de povos que habitam a região dos formadores do rio Xingu, vem passando por mudanças significativas associadas ao aumento do afluxo de dinheiro e bens industrializados ao longo da última década ou mais. O que segue é uma tentativa preliminar de formular uma hipótese sobre um aspecto particular desse contexto – a questão de se há uma relação, e qual, entre essas mudanças e a feitiçaria – com base na etnografia dos Aweti, povo tupi xinguano. Resistir à tentação de achar que nós sabemos melhor do que eles o que está acontecendo, e que sabemos o que é melhor para eles, é também compreender qual a forma, ou uma das formas, que a resistência à captura capitalista pode tomar em seu mundo.
With special reference to the Tupi-speaking Aweti people, this article reconsiders the nature of Xinguan pacifism in an analysis of sorcery and its relation to war in the Upper Xingu region of Brazil. It is argued that the mechanism that keeps violence there under control is probably less the result of an applied pacifist ideology—that is, rejection of war as the socius's generative matrix—than the effect of a specific conception of knowledge. It is through the Xinguans' refusal of the idea of singular truth, rather than through their rejection of war, that their logic is “good to think” through the question of peace. This article divides roughly into two parts, the first concentrating on Xinguan sorcery, and the second on their knowledge politics.
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