Ernani Chaves, UFPAAproximando-se dele, a ama pôs-se a lavá-lo, mas logo a marca viu, conhecendo-a ... (Homero, Odisséia, Canto XIX).O título deste texto-homenagem é intencionalmente provocativo, pois remete, antes de tudo, ao título do artigo de Adorno -"Charakteristik Walter Benjamins" -que guiou, para o bem e para o mal, toda uma corrente interpretativa, que se tornou hegemônica por décadas. "Charakteristik", nos diz, por exemplo, o dicionário Wahrig (1989), quer dizer Kennzeichnung, "assinalação", "marca", "caracterização". "Característica", segundo o Houaiss, é "traço, propriedade ou qualidade distintiva fundamental". Em alemão e em português, podemos remeter esta palavra as suas raízes gregas, kharaktêr,êros, que significa um sinal gravado ou ainda uma marca. Não por acaso, os sinais, as marcas que trazemos no corpo, como as herdadas geneticamente, são sempre lembradas quando nós mesmos queremos nos caracterizar ou quando os outros querem nos identificar. Mas essas marcas e sinais também podem ser ocasionados por acontecimentos dolorosos, mesmo traumáticos, como uma queda na infância, cujas consequências ficaram impressas definitivamente no corpo. Elas se tornam, assim, cicatrizes. Por isso, à criança que se tornou adulta, elas são mostradas pelos mais velhos como sendo as marcas de sua peraltice e, dependendo da circunstância na qual foram adquiridas, como se fossem medalhas de guerra. Em torno delas, portanto, sempre existe uma história, uma narrativa, contadas, em geral, das mais variadas maneiras. Desde pelo menos a Odisseia, essas marcas estão sempre ligadas à ideia de reconhecimento, por meio das quais alguém é alguém. À sua ama, Odisseu não pode dizer como fez no episódio do ciclope Polifemo, que seu nome é "ninguém", pois a ama, ao contrário do ciclope, conhece a sua cicatriz e por meio dela pode identifica-lo, mesmo que ele esteja disfarçado de mendigo.Para Adorno, a "característica" de Walter Benjamin, a sua marca distintiva, o sinal que passou a permitir seu reconhecimento, as suas cicatrizes ou como ele mesmo diz, o "seu nome" (uma sutil alusão ao episódio da Odisséia, ao qual acabo de me referir) tornou-se inseparável de sua morte, inseparável do fato de que ele próprio "apagou/extinguiu a sua vida" (sein Leben auslöschte) fugindo dos agentes de Hitler.1 Esta circunstância fez dele uma espécie de herói para a geração do imediato pós-guerra, apesar da dificuldade que seus escritos -de "caráter esotérico" nos primeiros trabalhos e de "caráter fragmentário" na obra tardia -colocavam para seus leitores e intérpretes. A fascinação pelo autor e pela obra -esta é em última instância a posição de Adorno -não nos ajuda em nada a compreendê-los, seja o autor, seja a obra. Nessa perspectiva, seu artigo tem a clara intenção de nos fazer ultrapassar esse primeiro plano de leitura, guiado pela fascinação, para que possamos, de fato, poder traçar uma espécie de retrato de Benjamin (no qual, necessariamente, vida e obra se cruzam) mais fiel, mais verdadeiro, para que
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