Num primeiro momento, o artigo tenta reconstruir rapidamente as relações históricas entre filosofia e literatura a partir de sua origem platônica, na oposição entre o discurso da filosofia (uma palavra criada por Platão) e o discurso da poesia, da retórica ou daquilo que Platão chama de sofística. Num segundo, coloca em questão as dicotomias estabelecidas por essa separação, tais como sensível-inteligível, mentiraverdade e, finalmente, metáfora e conceito. Tenta mostrar a importância do sensível e das narrativas ficcionais (ou míticas) na própria filosofia de Platão e introduz a questão das relações entre linguagem e mundo como temática central do indizível a partir da crítica platônica da escrita. Essa temática é desenvolvida nas suas abordagens distintas entre o olhar retrospectivo da filosofia e o olhar mais profético da literatura, para recolocar a questão da ficção não em termos de mentira, mas, segundo Paul Ricoeur, como gesto mimético que reconfigura o real e permite, assim, a invenção imaginativa de outras possibilidades de realidade, invenção que nos faz pensar. Por fim, evoca rapidamente as “formas literárias” da filosofia, segundo os termos de Gottfried Gabriel, e sua significação para uma melhor compreensão do pensamento filosófico.
261TRADUÇÃO DE várias obras recentes de Paul Ricoeur nos últimos anos oferece uma ocasião privilegiada de apresentar ao público brasileiro a trajetó-ria, simultaneamente excêntrica e exemplar, desse filósofo contemporâneo. Trajetória excêntrica com relação ao suposto centro que figuraria o Hexagone, a França e, em particular, Paris. Ricoeur é um dos poucos filósofos franceses atuais que não só lê e traduz do alemão e do inglês, mas também dialoga com correntes internacionais de pensamento tão diversas como a fenomenologia alemã (traduziu as Idéias I de Husserl já em 1950), a hermenêutica de Gadamer ou a filosofia analítica inglesa e norte-americana. Esse diálogo múltiplo, aliás, constitui considerável parte de seus textos. Em Tempo e narrativa, por exemplo, a discussão com Agostinho e Aristóteles, com Husserl e Heidegger, mas também com Braudel, Danto, White, Propp, Greimas, Weinrich, sem falar em Thomas Mann e Proust, ocupa mais da metade da obra. Tal confrontação com pensamentos alheios levou à crítica muito freqüente de que Ricoeur não teria um pensamento próprio. Só saberia, como um bom professor (meio chato como são os bons professores!), expor as idéias dos outros e corrigir-lhes os excessos. Gostaria, aqui, não apenas de defender uma originalidade estonteante da filosofia de Ricoeur -tal originalidade, aliás, me parece pertencer a pouquíssimos, apesar das afirmações mercadológicas contrárias -, mas de ressaltar sua coerência e sua generosidade. A questão central da obra, pois, poderia ser tematizada como a tentativa de uma hermenêutica do si pelo desvio necessário dos signos da cultura, sejam eles as obras da tradição ou, justamente, as dos contemporâneos. A discussão aprofundada de outros pensadores aponta não só para um hábito acadêmico e professoral, mas, muito mais, para uma abertura e uma generosidade no pensar que vai em direção oposta a certo narcisismo jubilatório e esotérico característico de muitas modas filosóficas (e outras) contemporâneas.
resumo Este artigo tem como pressuposto que a retomada do tema da memória e do esquecimento, em A memória, a história, o esquecimento, parte de uma pesquisa da “justa memória” em um cenário político francês que sofre de “bulimia comemorativa”, como denuncia Pierre Nora em Les lieux de mémoire. É apresentado o confronto entre uma concepção da memória imbuída de emoções subjetivas, em oposição ao rigor científico da história (Nora), e uma concepção da memória viva como condição transcendental de nossa relação com o passado (Ricoeur). Esse confronto se abre sobre a insistência do aspecto ético da política memorial e das práticas coletivas de esquecimento e de amnésia. Segundo Ricoeur, as hipóteses de Freud sobre a elaboração do trauma e sobre o trabalho do luto podem servir como paradigma privilegiado a esse empreendimento que visa uma narrativa histórica justa.
This article begins with a presupposition regarding Ricœur’s approach to memory and forgetting in Memory, History, Forgetting. His reflections on “just memory” occur within a French political landscape that suffers from “commemorative bulimia,” as Pierre Nora put it in Les lieux de mémoire (Realms of Memory). The article contrasts the opposition to the import of subjective emotions from a rigorous scientific conception of memory (Nora), with living memory as the transcendental condition of our relationship to the past (Ricœur). This confrontation underscores the ethical dimension of the politics of memory and of the collective practices of forgetting and amnesia. According to Ricœur, Freud’s hypotheses concerning trauma and mourning should serve as the best suited model for a task that aims for a just historical narrative.
Gostaria de iniciar esse pequeno texto com uma comparação emprestada à minha experiência pessoal a mais trivial. Quando tomo um táxi em São Paulo, acontece frequentemente de eu conversar com o motorista que, muito rapidamente, me pergunta: "A senhora fala bem o português, mas tem um sotaque esquisito. De onde é a senhora?" Respondo que nasci na Suíça, mas que já faz muito tempo que moro no Brasil. Agora já há quase trinta anos. Na sequência disto, invariavelmente, obtenho a mesma resposta: "Ah! Então a senhora já é brasileira!" E vupt, eisme incorporada, querendo ou não, claro que com muita gentileza, à nação brasileira.Experiência rigorosamente inversa àquela que vivi no subúrbio Leste, quando passei um ano sabático em Paris. Minhas filhas, ainda pequenas, iam para a Escola Republicana, eu as acompanhava e as ia buscar, como outras mães de crianças portuguesas, árabes ou mesmo francesas. Uma mãe francesa, muito distinta, me perguntou um dia: "A senhora tem um sotaque engraçado, de onde é a senhora?" Respondi que nasci na Suíça francesa, em Lausanne, e que eu devia ter ainda o sotaque do cantão de Vaud. Gentilmente, a senhora me disse: "Ah! Mas a senhora sabe... a senhora fala muito bem o francês!" E vupt! Eis-me relegada para fora da verdadeira língua francesa, a saber, aquela que é falada com o sotaque parisiense.Estas pequenas anedotas revelam o quanto as relações entre o autóctone e o estrangeiro são diferentes conforme os países, neste caso o Brasil e a França. Elas diferem também segundo a posição social deles. O chofer de táxi de São Paulo está às minhas ordens e, sobretudo, eu não sou nem negra nem boliviana, mas branca e loura. A senhora francesa não se dirige a uma mãe árabe, portuguesa ou senegalesa, mas a uma outra mulher branca, vestida da mesma maneira que ela. O motorista de táxi é descendente de um imigrante italiano, português, africano ou japonês, que percebe, na imigrante recente que eu sou, o lustre de um país mais rico e mais 'civilizado', como dizem os brasileiros. Os ancestrais da senhora francesa são, talvez, gauleses de raiz ou, pelo menos, franceses 'autênticos', que colonizaram outros países ditos menos civilizados.Como essas diferenças foram elaboradas pelos pensadores brasileiros e europeus? Eu queria propor à reflexão dois modelos teóricos, escolhidos por seu caráter crítico. De um lado, Sérgio Buarque de Holanda e sua famosa hipótese do "homem cordial" brasileiro; de outro,
This paper attempts to analyse the relationship between Paul Ricœur and Friedrich Nietzsche starting from the specific problem of the debt that we owe to the past, that is of the legacy of the past. It is indeed a striking fact that in Memory, History, Forgetting, although Ricœur refers several times to Nietzsche, he does not take up the nietzschean analysis of the Schuld – “debt, fault”– in the Genealogy of Moral, even tacitly decline them. Starting from the importance of the notion of fault in Ricœur (particularly in The Symbolic of Evil) we will try to better understand this refusal and is hermeneutical implications.
scite is a Brooklyn-based organization that helps researchers better discover and understand research articles through Smart Citations–citations that display the context of the citation and describe whether the article provides supporting or contrasting evidence. scite is used by students and researchers from around the world and is funded in part by the National Science Foundation and the National Institute on Drug Abuse of the National Institutes of Health.
hi@scite.ai
10624 S. Eastern Ave., Ste. A-614
Henderson, NV 89052, USA
Copyright © 2024 scite LLC. All rights reserved.
Made with 💙 for researchers
Part of the Research Solutions Family.