Introdução Algumas experiências vividas no trabalho de campo se transformam em marcas indeléveis. Há momentos, ou ao menos pode haver alguns, profundamente perturbadores em termos etnográficos, existenciais e morais. A situação mais desconcertante que vivenciei ocorreu em Ventersdorp, na África do Sul, em abril de 2010. Na época, eu realizava trabalho de campo na Cidade do Cabo quando um nacionalista africânder pró-apartheid foi assassinado enquanto dormia em sua fazenda por dois homens negros. A comoção social, os rumores acerca do crime (que mobilizavam razões ora trabalhistas, ora raciais ou sexuais) e o medo de uma guerra racial se espraiaram pelas ruas, pelos jornais, pelo rádio e pelos noticiários da televisão. Assim que o assassinato veio a público, falou-se em morte por questões trabalhistas: Eugène Terre'Blanche não estaria pagando os salários dos seus funcionários, que resolveram então se vingar. A segunda versão foi a racial e alimentava todos os fantasmas do apartheid a respeito do extermínio e/ou da expulsão dos africânderes da África do Sul. A terceira versão causou espanto e rebuliço, pois, como Terre'Blanche foi encontrado com as calças arriadas até os joelhos, veiculou-se que ele estaria numa festinha íntima e etílica com os dois rapazes, e que desentendimentos típicos de crimes homofóbicos teriam levado ao assassinato. Outros falaram de estupro seguido de morte. Estávamos às vésperas da Copa do Mundo de 2010, que foi realizada na própria África do Sul. O episódio teve, portanto, grande atenção da mídia internacional. Como afirmou Trajano Filho (2008:256), rumores "são como bombas tanto no seu modo de transmissão como na composição". A metáfora se alinha ao clima tenso e belicista que se instaurou com o assassinato. Terre'Blanche morreu exatamente como dizia que os brancos iriam morrer com o fim do apartheid: assassinados enquanto dormiam. Todo esse contexto me levou a pedir autorização ao CNPq, que financiava outro projeto, 1 para seguir da província do Cabo Ocidental para uma cidade do noroeste sul-africano, a duas horas de carro de Joanesburgo,