Nesse texto, os autores pretendem alçar seu pensamento sobre a cidade através de um personagem conceitual que desencaixa e evidencia os mecanismos constituintes da urbanidade em nossa cultura. Chamada de Tuta, cujo nome de batismo seria Antônia. Nascida negra, pobre e mulher, Tuta foi adotada por uma família de ilustres. Foi considerada como criada, em dois sentidos: por ter sido adotada e por servir com seus préstimos domésticos aos pais-patrões. Criou-se dentre os filhos desses, crianças de sua mesma idade, tendo assumido o direito de chamar-lhes de doutor, em que pese o ridículo dessa titulação entre crianças. Trata-se, sem dúvida de uma vida qualquer que a qualquer um de nós poderá se apresentar como personagem intercessor. Tuta, nome tatibitate, próprio para crianças sem aperfeiçoada linguagem, despersonalizado e impróprio, apenas servindo à função de ser convocado com facilidade. Teria havido algum momento de esquecimento possível a você de nossa diferença? Somente anos depois é que viemos aqui falar da cidade de nossa memória e vimos você, já desaparecida e enterrada em cova rasa.
1) A cidade individuando-se da saturação rural: o escravo e o trabalhadorAbro os olhos. Vejo o teto da minha casa. Ainda que meu teto não tenha sido feito com grande personalidade eu o reconheço claramente. Meu teto não possui adornos. Aliás, nem gostaria destes. Muito tive de espanar as sujeiras que se aninham nas entranhas destes enfeites. Meu teto é liso. Ou melhor, reto. Pois possui algumas manchas de infiltrações e mofo que são a singular garantia de que despertei mais uma vez em minha casa. Sabe, eu até gosto de ter essas manchas por perto. Não só por que estou fatigada de tanto apagar os restos do desastre do tempo pelos cenários domésticos das famílias. Apenas gosto de cultivar meu mofo cá acima de mim por que me é familiar, tem um aconchego de lar. Até no cheiro úmido e ocre da massa corrida esboroando encontro um afago de reencontro. Sempre vivi em lugares assim. Não, não me entendam mal. Vivi em boas casas, casas grandes e amplas com diversas janelas que emolduravam belos jardins tomados de três marias e roseiras. Muito tempo passei em salas amplas, de pé direito alto, com piano e móveis vindos do estrangeiro em largas viagens de navio. Muito caminhei por compridos corredores salpicados de portas e fotos dos ancestrais da família. Muita refeição fiz em grandes e agitadas cozinhas, com tinas de cobre e fogões a lenha a fumegar segundo o ritmo da lida diária. Carreguei jogos de porcelana mais leves e delicados que um pastel de santa clara. Mas em meio a tanta elegância e opulência eu tinha o meu quinhão de austeridade cristã. Vivia em uma peça ao fundo da casa, estrategicamente junto do alvoroço da cozinha. A dependência da empregada. Lá os móveis eram da madeira amarela e nua dos eucaliptos. Ali as xícaras eram grossas como a sola dos pés dos que trabalham na lavoura, exigindo dos lábios gestos pouco delicados para sorver aos líquidos. As dimensões da peça eram dignas de um claustro. Como não tinha janelas, apenas uma ...