A globalização da cura espírita Biomedicina, João de Deus e seus seguidores australianos* *Este artigo é uma versão atualizada do artigo original que foi publicado na revista Taja (2009, 20: 229-246).
IntroduçãoÉ muito ampla a interface entre saúde e religião. Não obstante haver recursos seculares de saúde amplamente difundidos, a busca espiritual por serviços de cura persiste com vigor nas sociedades contemporâneas. A busca espiritual da saúde não compete com os serviços regulares de saúde, porém. O presente estudo procurou descrever e analisar uma unidade de cura da medicina alternativa que obteve grande visibilidade nacional e internacional, focalizando preferencialmente a experiência de seus usuários. Essa escolha, sob perspectiva antropológica, possibilita uma alternativa peculiar para interconectar saúde e ciências sociais, a fim de estimular, por meio do estudo desse objeto, a reflexão sobre aspectos relevantes da sociabilidade.Csordas (2002) afirma que os antropólogos deveriam estudar as experiên-cias de transformação das pessoas em vez de manter o foco habitual nas práticas dos curadores. De acordo com ele:O que precisamos nesta fase de desenvolvimento de uma teoria da cura é especificar como o processo terapêutico efetua uma transformação nos estados existenciais. Uma abordagem baseada na experiência dos participantes e suas percepções de mudança pode chegar a uma concepção mais pragmática de cura como um processo cultural.
Vol27n1.indd 9525/06/2015 19:13:37Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 27, n. 1
96A globalização da cura espírita, […] uma descrição antropológica equilibrada também deve levar em conta as características precisas do contexto cultural em que ocorre a cura (Csordas, 2002, p. 54).Em vez de concentrar-me na figura do médium curador espírita João de Deus, sua mediunidade e poderes de cura, procuro entender por que tantos estrangeiros -em particular, australianos -são atraídos pela cura espírita brasileira. Tentarei responder à exortação de Csordas apresentando narrativas de vida de dois australianos, destacando suas experiências com a medicina ocidental e a maneira pela qual suas experiências na Casa de Dom Inácio, o centro de cura de João de Deus na pequena cidade de Abadiânia, transformaram sua compreensão de cura e de doença. Apesar de duas narrativas serem evidentemente uma amostra muito pequena, acredito que elas encapsulam as várias histórias que ouvi em mais de sessenta entrevistas feitas com pessoas ligadas à Casa de Dom Inácio a partir de 2004, quando comecei a pesquisa. Desde então, tenho ido quase todos os anos à Casa (morei lá no primeiro semestre de 2007) e participado de atividades de seguidores do curador na Austrália, além de ter participado de cinco eventos internacionais de cura que João de Deus conduziu: dois na Nova Zelândia (2006 e 2007), dois na Alemanha (2011 e 2012) e um na Austrália (2014).Neste artigo, demonstro como o conceito de cura da medicina alternativa e do movimento da Nova Era produz uma disposição (Bourdieu, 1972) para a cura "tradicional...