A partir de ações aparentemente simples, como "segurar", "caminhar" e "falar", esse artigo pretende pensar como as "mães de micro" vinham lidando com a companhia e o cuidado de seus filhos portadores da síndrome congênita do vírus Zika. Proponho que uma epidemia também possa ser pensada, a partir do olhar da Antropologia, pelas ações e práticas miúdas e cotidianas protagonizadas por aquelas pessoas que, majoritariamente, têm se incumbido dos cuidados de suas vítimas. Algumas dessas mulheres da cidade do Recife/PE lançaram outras questões para compreender seus filhos, para além da deficiência mais evidente em seus corpos. Elas apresentam outras frentes de "luta" necessárias diante dessa experiência. PALAVRAS-CHAVE: SíndromeCongênita do Vírus Zika. Recife. Antropologia. ! Soraya FLEISCHER Vol 03, N. 02 -Mai. -Ago., 2017 | https://portalseer.ufba.br/index.php/cadgendiv ! 94 A antropologia feita em casaNo domingo em que viajaria para uma temporada de trabalho de campo no Recife, eu estava às voltas pela casa. Tentando incluir na mala todos os itens que eu tinha listado, lembrando de vários outros detalhes de repelente de insetos a adaptadores de tomada. Eu parava, vez ou outra, para dar atenção e brincar com a minha filha de seis anos que, sabendo de minha eminente partida, estava ansiosa por ter que passar uma quinzena longe da mãe. No momento em que eu fui até o computador para encontrar e anotar os endereços e contatos das pessoas que eu visitaria, Cecilia se aproximou novamente de mim. Havia uma foto de uma mulher e seu filho no colo e eu comecei um diálogo para tornar a pesquisa e a viagem mais palpáveis e próximas para ela: Soraya: Filha, essa é uma das pessoas que eu vou conhecer no Recife. Essa eu vou visitar amanhã, veja só. Cecilia: Quem é esse com ela? S: É o filho dela. C: (Em silêncio, analisando a foto). Ele é muito feio. S: (Eu me surpreendo com a franqueza dela). É? Você achou? Por que você o achou feio? C: A cabeça dele é muito grande. S: (Eu me surpreendo ainda mais). Como assim, filha? O que você quer dizer? C: Ele é adolescente? Ele é grande já? Por que está no colo da mãe assim? S: Ele é bebê, filha. Pequeninho. Por isso está no colo da mãe dele. C: Ele não parece bebê. Parece grande. Acho que ele não é bebê, mamãe.Geralmente, quando as pessoas descrevem e/ou comentam sobre as crianças acometidas com o que hoje se convencionou chamar de "síndrome congênita do vírus zika", a cabeça "pequena" é a principal característica apontada. Na conversa acima, eu me deparei com outra percepção. Cecilia me tirou do eixo, sacodiu minhas certezas. Ela deixou o escritório e foi encontrar outra brincadeira. Eu fiquei ali, olhando para Soraya FLEISCHER Vol 03, N. 02 -Mai. -Ago., 2017 | https://portalseer.ufba.br/index.php/cadgendiv Soraya FLEISCHER Vol 03, N. 02 -Mai. -Ago., 2017 | https://portalseer.ufba.br/index.php/cadgendiv ! O projeto em questão se intitula "Microcefalia, deficiência e cuidados: Um estudo 1 antropológico sobre os impactos da síndrome congênita do vírus Zika no estado de Pernambuco". Aproveito ...
Este artigo discute concepções de concepção, gestação e parto logo após o “boom” da epidemia de Zika no Brasil, a partir das narrativas de mulheres mães de bebês com microcefalia. Os seus filhos foram concebidos e gestados em um contexto sui generis, bastante caótico e inseguro, por conta do desconhecimento da raiz da deficiência, nas ruas de Recife e em bairros de camadas populares. A maioria nasceu em hospitais públicos da capital pernambucana. Dessa forma, procurando compreender tais experiências da vida sexual e reprodutiva dessas mulheres, com elas estivemos em 2016 e, depois, em 2017, por meio da observação diária de seu cotidiano e relações sociais, mas, nesse caso, a partir da memória de suas gestações e partos. Trata-se de mais uma particularidade, da vida sexual e reprodutiva das mulheres brasileiras, a ser pensada, por isso aqui recuperamos suas ideais e suas práticas, cotejando-as a outras, um pouco mais amplas, sobre o assunto.
A Antropologia brasileira tem priorizado vagarosamente o tema das doenças crônicas e degenerativas. Doenças como a hipertensão arterial sistêmica e a diabetes mellitus tipo 1 e tipo 2, por exemplo, que têm um impacto epidemiológico inegável na população brasileira, recebem aportes analíticos das áreas da saúde, mas só nos últimos anos têm captado a atenção dos pesquisadores das Ciências Sociais. As áreas da saúde, que por enquanto não oferecem curas definitivas para essas doenças, têm consolidado práticas de “controle” como formas de tratamento. Sobre essas práticas de controle é que repousa o foco desse artigo, sobretudo aquelas elaboradas pelas pessoas que vivem com essas doenças. Primeiro, apresento os passos metodológicos em campo. Depois, discuto três grandes conjuntos de práticas de controle realizadas por pessoas que convivem com hipertensão arterial e/ou diabetes mellitus no bairro da Guariroba, Distrito Federal. Medir os índices corporais e conhecer a própria “normalidade”; ter vários aparelhos de medir à mão; discutir os números enunciados pelos aparelhos com um público amplo e diverso; reinventar a posologia dos medicamentos; e conhecer a influência das emoções nestas doenças crônicas são as práticas que considero terem intuito controlador para os entrevistados nessa pesquisa. Por fim, anuncio possibilidades interpretativas como um aporte provisório para fazer avançar os estudos sobre a cronicidade na Antropologia brasileira. Palavras-chave: Doenças crônicas, práticas de controle, Guariroba (Distrito Federal).
ResumoNos subúrbios de Brasília, as cuidadoras da saúde doméstica são particularmente as mulheres idosas. Elas conhecem os atalhos oficiais e não oficiais no sistema de saúde, os medicamentos que cada membro da família deve tomar e os lugares onde os medicamentos são distribuídos ou podem ser comprados mais baratos. Elas também experimentam com pílulas e cápsulas -quais são fortes ou perigosas, quais precisam ser substituídas e combinadas com outros fármacos, etc. A partir de pesquisa etnográfica com moradores mais antigos do bairro da Guariroba na Ceilândia, DF, que convivem com hipertensão arterial sistêmica e diabetes mellitus, este artigo pretende discutir como redes informais de compartilhamento farmacêutico e formas locais de comunicação entre famílias, vizinhos e profissionais de saúde determinam uma compreensão mais ampla e complexa de "saúde". Alguns dados que nos apoiarão nessa discussão são as histórias de vida desses migrantes para o DF; o consumo de medicamentos como gerador de experiências corporais e sociais do adoecimento; a automedicação como prá-tica também após o contato com a esfera biomédica. Esse artigo quis enfatizar que as opiniões técnicas e produtos emitidos pelos atores oficiais do cuidado da saúde não evitavam que uma rede muito mais ampla e criativa fosse constantemente acionada por essas mulheres entrevistadas, nem a substituíam. E que aperfeiçoar essa rede é uma demonstração pública do envolvimento e também do comprometimento destas cuidadoras com a recuperação ou, ao menos, a estabilidade do doente.
Devolution, restitution or sharing can mean, within other possibilities, to offer products to participants of a research or an extension project. Far from a new practice in Anthropology, returning results is still unusual, little organized and valued. This paper presents and discusses a devolution experience by an extension project in Anthropology that was developed in a primary care unit in the outskirts of Distrito Federal (Brazil). Local reactions were very different from what was expected by the project's staff, but still permitted dialogue with the health professionals and, more important, deepened our knowledge about work relations in this health institution. Even though IRB approval has been granted, negotiations about starting and continuing academic projects have to be negotiated continuously. Subjectivity, power and authority permeate any anthropological initiative from its beginning and much after it supposedly has been concluded.
Neste artigo, são apresentados dados etnográficos, coletados entre 2004 e 2005, relativos ao atendimento obstétrico oferecido por um grupo de 21 parteiras na cidade de Melgaço, estado do Pará, Brasil. A literatura já descreveu amplamente o trabalho das parteiras domiciliares no Brasil e em diversos países do mundo, mas há uma prática que foi muito pouco analisada até então. Este artigo tem como objetivo discutir mais precisamente a prática da puxação, massagem abdominal realizada sobretudo em gestantes. A puxação tem como objetivo aliviar indisposições, informar a posição e sexo do feto, a previsão da data e local do parto, socializar a mulher para a maternidade e contextualizar a gestação dentro dos padrões locais de reprodução, família, bem-estar e saúde. O que se observa é que estas parteiras oferecem um serviço pré-natal muito próprio e adequado às necessidades específicas das mulheres da cidade. Mesmo que o parto domiciliar esteja sendo paulatinamente substituído pelo parto hospitalar, este atendimento personalizado tem se ampliado.
Nos meses em que vivi em Melgaço, região marajoara do estado do Pará, por conta de minha pesquisa de doutorado, convivi intensamente com a sexagenária Dona Dinorá 1 . Além de minha anfitriã, ela era uma das parteiras mais requisitadas nesta pequena cidade ribeirinha de 3.500 habitantes, tanto para matéria obstétrica, quanto para atendimentos ginecológicos e pediátricos. Todos os dias, ela caminhava pelas doze ruas da cidade atendendo chamados, passando receitas, puxando barrigas 2 . Nestas pernadas 3 , como dizia, cruzávamos com vários tipos recorrentes: meninos vendendo chopes (i.e., sacolés) de abacate, marreteiros anunciando os novos produtos do crediário (como colchas, louças, sandálias, perfumes), crianças indo e voltando da escola, carreteiros entregando caixas nos mercantis ou malas nas casas dos viajantes recém-chegados, mulheres carregando latas d'água, homens voltando do serviço agrícola ou da pescaria, enfermeiras de branco circulando sobre suas bicicletas entre a unidade de saúde e a secretaria municipal de saúde etc. Mas causava-me estranhamento um tipo específico, duas ou três mulheres que pela cidade perambulavam solitárias e ignoradas. Elas tinham algumas características comuns. Não calçavam chinelos, tinham os cabelos longos e desgrenhados e suas roupas eram sempre as mesmas, rotas e armafanhadas. Andar descalço, despenteado e sujo eram aspectos abominados pelos melgacenses, sobretudo pelos mais empobrecidos, para quem parecia sempre necessário demarcar fronteiras entre a pobreza e a mendicância. Ninguém dirigia a palavra a estas mulheres e elas tampouco conversavam com quem cruzavam. Olhavam para o chão, procuravam comida pelos cantos, resmungavam frases incompreensíveis para si mesmas ou dirigidas às árvores, aos pássaros, aos cachorros magrelos que eram vistos por toda a cidade. Eram motivo de chacota, eventualmente crianças as xingavam e lhes arremessavam pedras ou frutas, homens lhes jogavam gracejos desrespeitosos, adultos riam-se delas abertamente. Contudo, todos sabiam de quem eram irmãs, filhas ou cunhadas e, vez por outra, eram recolhidas pelas próprias famílias para receberem um prato de comida ou um banho. Seus filhos haviam sido distribuídos entre os parentes e seus maridos haviam-nas abandonado e se recasado.
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