Ao propormos um dossiê intitulado "As verdades da ficção", é claro que estávamos pensando na série de debates que se travou, ao longo das décadas de 1960 e 1970, no campo da historiografia. As palavras "verdade" e "ficção" remetem, para todos que têm uma certa familiaridade com essa produção intelectual, em especial à obra de Hayden White, que, sob forte influência de um aparato teórico forjado no campo da teoria literária, tirou o sono dos historiadores tradicionais. O uso de obras ficcionais como fonte de conhecimento histórico ou social vem de longa data, contudo.i White, por sua vez, ao aproximar ambos os termos, inverte o sentido epistemológico: não é mais a obra ficcional que dá acesso, em alguma medida, a um conhecimento histórico ou sociológico -a alguma dimensão do que chamamos de real; se trata, agora, de ressaltar que o uso de elementos ficcionais pela narrativa histórica impossibilita ver a história como fonte objetiva de conhecimento.O dossiê tem exatamente a finalidade de revisitar essa questão, que, verdade seja dita, já não causa o mesmo furor de outrora. O próprio Hayden White andou fazendo, recentemente, uma mea culpa, ainda que pela metade. Em The Practical Past, ele reconhece que ter usado, para tratar da escrita historiográfica, o conceito de ficção sem ressaltar que este seria "um tipo de invenção ou construção baseada em hipóteses, mais do que uma maneira de escrita ou pensamento focada em entidades puramente imaginárias ou fantásticas" (WHITE, 2014, p. xii), abriu espaço para mal-entendidos desnecessários. Em certa medida, o livro de Peter Gay, Represálias selvagens -cujo título do epílogo, "As verdades das ficções", não custa lembrar, inspirou o presente dossiê -, é uma reposição da questão entre literatura (ou ficção) e história (ou verdade) em tempo do refluxo da vaga cética. Daí que possa sair mais ou menos incólume com uma afirmação como a de que "pode haver história na ficção, mas não deve haver ficção na história" (GAY, 2010, p. 150), a qual seria tachada de conservadora um quarto de século atrás.
Resumo: Este artigo tem por objetivo repensar o lugar que O moço loiro, segundo livro de Joaquim Manuel de Macedo, publicado em 1845, tem na constituição de um acervo comum do romance brasileiro. Defende-se que o romance sentimental (também chamado de romance urbano ou romântico) se estrutura a partir de uma clivagem geracional. De um lado estão os jovens, que agem segundo os valores dos novos tempos; do outro, os velhos, mais sensatos e desconfiados dessa nova ética. Ao contrário dos demais romances de Macedo, em que o polo da velhice assume a direção moral das narrativas em seus momentos de crise, O moço loiro termina em chave liberal. Argumenta-se que essa inflexão progressista, por assim dizer, não tem mais condições de possibilidade em contexto de restauração conservadora como é o do Brasil da segunda metade da década de 1840.
No início de seu último livro, Far Country, Franco Moretti apresenta uma comparação entre os lugares onde trabalhou. Em Salerno, uma universidade menor no sistema italiano, localizada numa região das mais pobres do país, as condições estavam longe das ideais. Todo o departamento de Inglês contava apenas com dois professores, que, no inverno, por causa de problemas de infraestrutura, tinham que dar aulas encasacados. Os alunos, estes eram quase todos oriundos de escolas públicas da região. Já em Stanford, onde ele encerrou a carreira em 2016, a situação era inteiramente outra: a universidade era particular e das mais ricas do mundo, localizada em Silicon Valley; os alunos, por sua vez, vinham de escolas privadas de alta qualidade. E o que une essas duas pontas? "[...] in both places, students seemed to know very little about literary history" (MORETTI, 2019). Moretti não está interessado em apresentar as razões desse desconhecimento; o que ele se propõe a fazer é apresentar os caminhos, nada ortodoxos, buscados para remediar, termo que usa não sem ironia, esse déficit, o que também é uma retomada dos principais temas de suas inquietações teóricas ao longo da sua atuação como professor. 1 Nossa situação aqui, na periferia, é um tanto outra. Os alunos e as alunas que chegam aos cursos de Letras até têm uma noção da literatura como "uma série de obras dispostas numa ordem cronológica e como partes integrantes do processo histórico" (WELLECK; WARREN, 1971, p. 48), ainda que este esteja organizado segundo a lógica dos estilos de época. Contudo, qual o primeiro esforço do professor e da professora na graduação senão desmontar esse esquema, de fato limitador e ultrapassado, de se pensar a literatura? Em síntese, o investimento crítico não deixa de ser des-historizador, com perdas e ganhos.
Resumo: O artigo analisa a mudança da função literária do raisonneur sob um ponto de vista histórico. Metodologicamente, esse trabalho está assentado nas premissas desenvolvidas por Franco Moretti, para quem forma literária é a maneira segundo a qual a ficção lida com contradições históricas reais. Nesse sentido, defende-se que a mudança na caracterização do raisonneur no teatro realista de José de Alencar, que se torna mais jovem e urbanizado, busca apaziguar as ansiedades de uma vertente tradicional e agrária do conservadorismo brasileiro frente às transformações modernizantes das formas de vida em meados do século XIX. Palavras-chave: José de Alencar; Joaquim Manuel de Macedo; forma literária; conservadorismo Abstract: This article investigates the change of the raisonneur literary function under a historical point of view. Methodologically, it is based on the premise developed by Franco Moretti, to whom literary form is the way by which fiction deals with actual historical contradictions. Thus, the aim is to show that new raisonneur created by José de Alencar in his realist plays, a young and urban one, seeks to appease the anxiety of a more traditional and agrarian branch of Brazilian conservatism, that was dealing with the transformations of the forms of life in the middle of nineteenth century. Keywords: José de Alencar; Joaquim Manuel de Macedo; literary form; conservatism Introdução e argumentoOs objetivos do livro de João Roberto Faria (1993, p. 261), O teatro realista no Brasil, são bastante claros: por um lado, "caracterizar a dimensão dessa dependência", isto é, a da produção dramática produzida por aqui entre os anos de 1855 e 1865 em relação ao realismo dramático francês, que nos serviu de modelo; por outro, "ampliar as informações existentes em nossa historiografia literária" sobre esse assunto.No que se refere a esses dois objetivos, não resta dúvida de que ele os atinge com desenvoltura. O levantamento de peças francesas e brasileiras, muitas das quais esquecidas, é impressionante; e a vastíssima e cuidadosa pesquisa em jornais e revistas do período dão bem a dimensão do impacto da novidade estrangeira e da sua capacidade de mobilizar a imaginação dos nossos jornalistas e escritores.Me parece haver, contudo, um terceiro objetivo, esse não explicitado, que é o de refutar a existência da comédia ideológica apontada por Roberto Schwarz como
Resumo:Os historiadores literários estão escavando uma grande variedade de formas literárias esquecidas, o que coloca uma questão das mais importantes: como apreender a especificidade dessas obras. A leitura cerrada e a leitura sintomática têm sido, até aqui, as ferramentas mais importantes usadas pelo críticos literários, mas elas se mostram ineficazes para lidar com romances que não se conformam com os paradigmas realista e modernista. O artigo ilustra esse método através da redescoberta da ficção de aventura marítima enquanto uma influente prática transnacional do romance de Defoe a Conrad. Palavras-chave: narratologia; arquivo; ficção marítima Abstract:The literary historians are excavating a great range of forgotten literary forms, which posits the important question on how to apprehend their specificity. So far, close reading and symptomatic reading have been the most important tools used by literary critics, but they are unable to deal with novels that do not conform to the realist and modernist paradigms. The article examines this return to the archive discusses the methodology necessary to grasp these forgotten forms. The article illustrates this method through the rediscovery of sea adventure fiction as an influential transnational practice of the novel from Defoe to Conrad. Keywords: narratology; archive; sea adventure fiction O retorno dos estudos literários ao arquivoAo longo dos últimos vinte e cinco anos, os estudos literários têm vivido um "retorno ao arquivo", um renovado interesse pela pesquisa histórica por parte dos críticos literários treinados na era da teoria. Mais do que um movimento bem definido, com um programa unificado, o retorno ao arquivo constitui uma afiliação informal entre os críticos que voltaram ao arquivo com questões tão diversas quanto seus paradigmas teóricos de formação. Uma vez no arquivo, eles têm continuado a trabalhar com a teoria literária. Aliás, o próprio conceito de arquivo de que se valem foi moldado pela reformulação teórica que Michel Foucault fez dessa instituição ao expandir a noção de arquivo de uma coleção de registros materiais brutos do passado aos discursos dos quais esses registros são os resíduos.
Este artigo busca analisar e explicar as modificações por que passa um mesmo tropo literário – o do escravo doméstico como portador de uma carta amorosa – em três produções ficcionais brasileiras do século XIX, a saber: Rosa (1849), de Joaquim Manuel de Macedo; O demônio familiar (1857), de José de Alencar; e, por fim, Iaiá Garcia (1878), de Machado de Assis. Argumenta-se que, ao colocar em cena o escravo doméstico como portador de uma carta amorosa, esses autores discutem, de maneiras distintas, todas historicamente determinadas, um mesmo problema social, que diz respeito às normas de autoridade senhorial e sua dissolução ao longo do século XIX.
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