Este estudo analisa criticamente as mudanças observadas no tratamento do sofrimento psíquico na história recente, apontando a contribuição de fatores como: a padronização de sintomas trazida pelas sucessivas edições da série DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), os resultados de pesquisas na neurociência - que tentam fundamentar o funcionamento psíquico em bases orgânicas - e o grande desenvolvimento dos psico-fármacos, fruto de maciços investimentos financeiros. A ação desse conjunto de fatores teve por efeito a perda da noção de sentido/significado dos sintomas e dos sofrimentos subjetivos, própria da psiquiatria clássica, e a crescente medicalização dos indivíduos na sociedade contemporânea. O texto busca alinhavar como aconteceu a produção de uma nova verdade acerca dos sofrimentos psíquicos e amplia essa análise, evidenciando que os procedimentos de medicalização surgidos no cuidado da população adulta foram estendidos também para as crianças. Revê a evolução do tratamento da criança, marcando a interação da pedagogia e da medicina na constituição da psiquiatria infantil. Além disso, busca evidenciar os efeitos dessa verdade sobre os sujeitos, identificando a forma como o discurso técnico (especialmente influenciado pelo discurso médico-psicológico) tem tido lugar no mundo contemporâneo e como este tem influenciado a Educação. Trata de ressaltar, como produtos, a banalização da existência, a naturalização do sofrimento e a culpabilização dos indivíduos pelas vicissitudes da vida. Argumenta que a psicologização da escola pode ceder lugar hoje à psiquiatrização do discurso escolar. A articulação saber/verdade/poder é aqui tratada a partir dos textos de Michel Foucault.
RESUMO: Temos observado um aumento significativo na prescrição de medicamentos psiquiátricos para toda sorte de sofrimentos cotidianos. Sabemos que as crianças não têm sido poupadas dessa lógica de tratamentos. A escola, por sua vez, tem apelado intensamente ao saber médico para "corrigir" os problemas apresentados por seus alunos. A prática descrita brevemente está sustentada por uma biologização cada vez mais bem-sucedida de nossa condição humana, ou seja, parece que chegou o tempo de o homem viver de perto o mito do criador, sustentado pelo controle da bioquímica e da genética de nosso organismo. Como efeito dessa biologização temos um silenciamento do sujeito em benefício da amplificação do lugar ocupado por seu organismo. Neste trabalho, pretendemos discutir o impacto dessa lógica de tratamentos para a prática nas escolas. O que pretendemos destacar aqui é que se a bioquímica responde ao porquê o menino aprende ou não aprende, e o remédio se torna um instrumento imprescindível na aprendizagem da criança, o professor "não tem mais nada a ver com isto", no duplo sentido que a expressão indica: o de desresponsabilização e o de impotência. Palavras-chave: Psicanálise; Educação; Medicalização WHAT CANNOT BE CURED MUST BE ENDURED? ABSTRACT: A significant increase in the prescription of psychiatric medication for all kinds of daily suffering is observed, and children have not been prevented from this treatment. Schools, on their turn, have intensively appealed to the doctor's knowledge to 'correct' the problems their students present. This briefly described practice is sustained by an ongoing well succeeded biologization of our human condition, that is, it seems that the time has come for man to experience the creator myth, supported by the biochemical and genetic control of our organisms. As an effect of this biologization, the subject is silenced for the benefit of the enlarge-ment of the room his or her body occupies. A discussion on the impact of this logic of treatment practiced in schools is developed focusing on a crucial question: would bio-chemistry answer the question why a child learns or not, would medicine play a main role in the child learning process, would a teacher 'have nothing to do with it' in the two senses the expression suggests: a process of irresponsibility and a status of impotence?
Em agradecimento O convite para escrever este artigo me trouxe a grata possibilidade de fazer um agradecimento público, que não faria de outra forma. Considero os anos vividos em parceria com professoras e supervisoras, agora colegas, que integram ou integraram o Serviço de Psicologia Escolar da USP, anos de formação. No Serviço, pude, pela primeira vez, habitar um universo que me encantava desde antes: a infância, suas instituições, a educação. Digo que naqueles encontros houve formação, pois havia transmissão de uma posição a partir da qual pensávamos o trabalho. Uma posição atenta a encontrar os sujeitos no território do trabalho das escolas; a como as produções destes sujeitos são qualificadas discursivamente, de que maneira atos e silêncios circundam os alunos, suas famílias, sua condição social, econômica, étnica e sexual. Nossa atenção dirigia-se aos sujeitos, para além dos indivíduos, sujeitos às instituições escolares com as quais trabalhávamos, das quais nos aproximávamos. Eu poderia dizer, hoje, que o trabalho junto ao Serviço de Psicologia Escolar me transmitiu uma articulação entre sujeito e discurso que tentarei desenvolver ao longo deste artigo. Assim, espero poder escrever um texto em agradecimento às docentes e profissionais ligadas diretamente ao trabalho do Serviço de Psicologia Escolar da USP, já que, ali se fez uma escola para mim. Na história da proximidade entre a Psicologia e a Educação, sabemos que a primeira cumpriu papel muito mais alienante do que libertador. Os escritos de Maria Helena Souza Patto nos fizeram ver isso sem álibi. Certas práticas em Psicologia dedicadas à escola funcionaram mais como operações classificatórias, quantificadoras e adaptativas-quando sustentaram "cientificamente" o binômio normal/anormal-do que contribuíram para o questionamento de práticas disciplinares e excludentes. Exemplo destas propostas foram os laboratórios de psicometria "do escolar" que perduraram tanto tempo nas escolas e direções regionais da educação e que ainda ressurgem na forma de "projetos de acompanhamentos individuais" na esperança de avaliar, tratar e adaptar alunos em "desajuste". Entre as décadas de 1970 e 1980, surgiram, nos campos da Saúde Mental e da Psicologia Escolar, críticas que se aproximaram na discussão acerca do caráter estigmatizante, adaptativo e disciplinar de tratamentos, bem como de avaliações e proposições psicológicas feitas sobre os alunos. Exemplo disso foram o Movimento Antipsiquiátrico, as discussões da Psicoterapia Institucional, bem como os trabalhos que apontaram a Psicologia e a Escola como instituições participantes da produção do fracasso escolar, representados pelo trabalho inaugural de Maria Helena Souza Patto (2015) em "A produção do fracasso escolar".
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