DESDE os estudos de Roger Bastide, na década de 1940, muita coisa mudou no Brasil, também no âmbito das religiões e das religiões afro-brasileiras. Velhas tendências foram confirmadas, novas direções foram se impondo. Religiões recém-criadas se enfrentam com as mais antigas, velhas religiões assumem novas formas e veiculam renovados conteúdos para enfrentar a concorrência mais acirrada no mercado religioso. Vou tratar aqui de um ramo religioso pequeno demograficamente, porém importante do ponto de vista de seu significado para a cultura brasileira e da visibilidade que transborda de seu universo de seguidores: as religiões afro-brasileiras. Trata-se de acompanhar as mudanças numéricas encontradas pelos censos para dimensionar os seguidores das religiões afro-brasileiras, e de examinar algumas de suas características, como cor e escolaridade, para então avançar, sem perder de vista as peculiaridades constitutivas e organizacionais dos cultos e terreiros, alguma explicação sobre mudanças pelas quais vêm passando essas religiões nos dias de hoje.
MUCH HAS changed in Brazil since the studies of Roger Bastide in the 1940s, including the religious milieu of the Afro-Brazilian religions. Old trends were confirmed, new directions imposed themselves. Newfangled religions confront the more established ones; old religions take on new forms and convey renewed contents to face increasingly strenuous competition in the religious marketplace. I will deal here with a demographically small religious faction that is nevertheless important in Brazilian culture because of the visibility of its followers: the Afro-Brazilian religions. I will examine the various census figures in an attempt to assess the breadth of Afro-Brazilian religions and will examine some traits of their followers - such as race and educational level. Then, without losing sight of the constitutional and organizational peculiarities of the cults and the terreiros [ritual grounds of the Candomble religion], I will attempt an explanation for the changes these religions are presently undergoing
Diferentes sociedades e culturas têm concepções próprias do tempo, do transcurso da vida, dos fatos acontecidos e da história. Em sociedades de cultura mítica, também chamadas sem-história, que não conhecem a escrita, o tempo é circular e se acredita que a vida é uma eterna repetição do que já aconteceu num passado remoto narrado pelo mito. As religiões afro-brasileiras, constituí-das a partir de tradições africanas trazidas pelos escravos, cultivam até hoje uma noção de tempo que é muito diferente do "nosso" tempo, o tempo do Ocidente e do capitalismo (Fabian, 1985). A
1Muito se tem dito sobre uma suposta influência crescente das religiões na política brasileira contemporânea. O principal sujeito dessa empreitada tem nome: a bancada evangélica. Trata-se de um grupo suprapartidário, composto por congressistas ligados a diferentes igrejas evangélicas, tanto do ramo histórico ou de missão como do pentecostal e neopentecostal, que atuariam em conjunto para aprovar ou rejeitar a legislação de interesse religioso e pautar diversas discussões no parlamento brasileiro. Seu nome oficial é Frente Parlamentar Evangélica, mas essa frente é correntemente chamada de bancada evangélica pela mídia, pela literatura científica, pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) e por seus próprios membros. A bancada evangélica surgiu com a eleição da Assembleia Constituinte, no final de 1986, já com uma característica bem marcada e que permanece até hoje: não é política nem ideologicamente homogênea, mas é, de forma geral, conservadora. Esse ativismo conservador evangélico traz para a luta política demandas moralistas que são reivindicações reais dos setores populares, não habituados a separar as esferas da política e da moralidade privada (Pierucci, 1996a, pp. 165-166 De lá para cá, essa participação só fez crescer, ainda que algumas igrejas tenham permanecido alheias à política partidária, enquanto outras não somente se fizeram presentes em diferentes partidos como fundaram partidos próprios. Fim de uma era, na qual era lugar-comum dizer que crente não se metia em política -seja como crítica, feita pelos católicos, seja como autodefinição dos próprios evangélicos, pelo menos de boa parte deles (Pierucci, 1996a, p. 163).Para a legislatura de 2015-2019 foram eleitos 75 deputados federais e três senadores publicamente identificados como evangélicos. Reunidos na bancada evangélica 1 , costumam votar coesos quando se trata de certas questões morais lastreadas por interesse religioso comum. À bancada evangélica pode se juntar a escassa parcela de congressistas católicos interessados também em defender pontos de vista de sua religião, formando a chamada bancada da Bíblia, esse estranho conjunto composto por grupos historicamente em pé de guerra entre si.Acontece que algo costuma ficar de fora da maioria das análises que alardeiam a atuação desses religiosos na política: a qualificação dos temas nos quais eles se engajam. Como se pretende demonstrar aqui, não se trata de "participação política" sem mais, e isso tem implicações teóricas extremamente relevantes.Começando pelos eleitores, adiante será visto como os brasileiros assumem ou não posições diferentes conforme sua filiação religiosa ao opinar sobre temas ligados ao comportamento dos indivíduos e à moral que os orienta, ou sobre questões relativas ao funcionamento da sociedade, do Estado e do governo. Diferentes religiões podem divergir sobre tudo isso. Trata-se de mostrar, sobretudo, que a religião de hoje dá tratamento privilegiado às coisas da intimidade em detrimento das coisas do governo da nação: o indivíduo é que ocupa o ce...
A persistir a tendência atual de conversão religiosa, a América culturalmente católica se tornará num futuro não distante culturalmente evangélica? As relações entre as religiões e as culturas -e os devotos, antigos e potenciais, tomados individualmente -compreendem aspectos e abordagens variadas. É meu propósito neste artigo apontar tendências recentes da religião, procurando mostrar que a relação com a cultura é diferente quando se trata desta ou daquela religião, e que essa particularidade é importante para se entender a dinâmica atual das religiões em termos de seu crescimento, estagnação ou declínio.Sociólogos entendem que a religião, sobretudo a que pode ser classificada como internalizada (Camargo, 1971; Pierucci e Prandi, 1996), intervém na visão de mundo, muda hábitos, inculca valores, enfim, é fonte de orientação da conduta. Antropólogos ensinam que "a cultura constitui um processo pelo qual os homens orientam e dão significado às suas ações através de uma manipulação simbólica que é atributo fundamental de toda prática humana", nas palavras de Eunice Durham (2004: 231). É comum dar como certo que a religião não apenas é parte constitutiva da cultura, mas também a abastece axiológica e normativamente. E que a cultura, por sua vez, interfere na religião, reforçando-a ou forçando-a a mudanças e adaptações. Ain- da que tais definições possam ser questionadas diante da crise conceitual contemporânea, religião e cultura ainda são referidas uma à outra, sobretudo quando se trata de uma nação, uma etnia, um país, uma região.Diz-se que a cultura da América Latina é católica, embora apresente distinções internas devidas à formação histórica diferenciada de cada um de seus países e regiões. Assim, a cultura brasileira e algumas outras se distinguem por seu caráter sincrético afro-católico. Nelas, a dimensão religiosa de origem negra ocupa espaço relevante, maior que os de elementos indíge-nas; nos países em que prevalece a religiosidade católica com pouca ou nenhuma referência africana, componentes de origem indígena podem ocupar lugar mais importante que aquele observado no Brasil. Sabemos, contudo, que a cultura muda, e que a formação de uma cultura global se impõe a padrões locais.Nos dias atuais, com o avanço das igrejas evangélicas e o concomitante declínio do catolicismo, o debate sobre religião e cultura tem proposto questões importantes, como esta, antes referida: uma América Latina de maioria religiosa evangélica -se tal mudança viesse a se concretizar -seria culturalmente evangélica? No Brasil, apagaria os traços afro-brasileiros, repudiados pelos evangélicos de hoje? Extinguiria o carnaval, as festas juninas de Santo Antônio, São João e São Pedro, o famoso "São João" do Nordeste? E os topônimos católicos seriam mudados -rios, serras, cidades, ruas? Os nomes de estabelecimentos comerciais, indústrias, escolas, hospitais? A cidade de São Paulo voltaria a se chamar Piratininga?Não são perguntas para responder num exercício de futurologia, mas dão o que pensar. Afinal, cultura e religião são muito interli...
Na última década, muita coisa mudou também no âmbito das religiões no Brasil. O censo de 2000 nos diz que o País está hoje menos católico, mais evangélico e menos afro-brasileiro. Velhas tendências foram confirmadas, novas direções vão se impondo. Religiões recém-criadas se enfrentam com as mais antigas, velhas religiões assumem novas formas e veiculam renovados conteúdos para enfrentar a concorrência mais acirrada no mercado religioso. Vou tratar aqui de um ramo religioso pequeno demograficamente, porém importante do ponto de vista de seu significado 1 Livre-docente e doutor em Sociologia pela USP, onde é professor titular; autor, entre outros livros, de Os candomblés de
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