A Bolívia passou por um longo processo de insatisfação popular com os modelos políticos apresentados à América Latina, afundando em crises e em governos ditatoriais, o que deixou abertas as portas ao neoliberalismo a partir dos anos de 1980. Fazendo frente a essa realidade, surgiu o Movimento ao Socialismo (MAS) que, congregando os interesses dos grupos explorados da sociedade boliviana, propunha outro modelo de sociabilidades fundado em concepções indígenas. Após a eleição do indígena Evo Morales à Presidência da Bolívia em 2005, foi aprovado, por referendo popular, em 2009, a Nova Constituição do país. De acordo com a definição constitucional, a Bolívia é um Estado Unitário Social de Direito Plurinacional Comunitário, que reconhece a autonomia dos territórios indígenas. Efetivando essa idéia, em 20 de setembro de 2015, foi aprovado, por referendo popular, o primeiro território autônomo Guarani de Charagua Iyambae, tendo as autoridades escolhidas por processo próprio tomado posse em 08 de janeiro de 2017. Nesse contexto, a presente pesquisa buscou analisar a experiência boliviana a partir das teorias descoloniais, dando relevo ao contraponto entre as ideias de Estado, entendido em sua acepção moderna-ocidental, e de autonomias indígenas. No caso da Bolívia, a implementação de um novo modelo de Estado que reconhece as autonomias indígenas tem implicado na necessidade de redefinir e reconfigurar o próprio conceito de Estado moderno e ocidental, ainda fundado na idéia de um só povo, um só território e uma só nação. A adoção desse novo conceito, entretanto, tem igualmente implicado em uma limitação da idéia de autonomia indígena, a qual deve estar circunscrita a um espaço territorial e simbólico definido e delimitado pelo direito estatal.
O artigo pretende explorar as narrativas em torno da construção do Complexo Industrial e Portuário do Pecém, no Ceará, em contraponto às demandas dos indígenas Anacé pela demarcação do seu território, visibilizando os conflitos entre a perspectiva indígena e a perspectiva do Estado que, aliada ao capital nacional e internacional, pretende garantir a implantação de inúmeras indústrias primárias na região. Resultado de um estudo qualitativo que triangula diversos métodos (observação participante, entrevistas livres e semi-estruturadas, além do levantamento bibliográfico e documental), busquei refletir sobre a agência e as mobilizações engendradas pelos Anacé para que suas narrativas, que conflitavam diretamente com as propostas do Estado do Ceará, fossem visibilizadas, tornando públicos, assim, outros sentidos de “desenvolvimento”.
Os Anacé, povo indígena que ocupa tradicionalmente um território localizado a oeste da capital cearense, vem sendo, desde meados da década de 1990, impactado com as construções do Complexo Industrial e Portuário do Pecém. Em contraponto, parte dos Anacé tem realizado retomadas para recuperar parcelas do território e assim garantir seus direitos de existir. Nesse contexto, com base em pesquisa bibliográfica, documental e de campo, investigamos a possibilidade de falarmos em pedagogias das retomadas, compreendendo-as como potentes espaços de aprendizagem partilhada e de construção de pessoas Anacé, o que passa pela mediação dos encantados. Conforme observado, as retomadas possibilitam acessar conhecimentos múltiplos a partir de contextos pedagógicos de formação e de aprendizagens produzidos nas práticas políticas de reaver territórios, memórias, encantados, pelo que se conectam com saberes territorializados e da encantaria.
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No Brasil, povos indígenas vêm ocupando terras (ato que denominam de retomadas) e/ou realizando por si mesmos a demarcação de seus territórios tradicionais (autodemarcações). Tais práticas remontam a década de 1980, e vem se intensificando em um cenário de violações de direitos e de ações realizadas pelo Estado brasileiro que põem em risco modos de existência indígenas e ameaçam a proteção de seus territórios. Assim, esta pesquisa objetivou investigar como essas práticas, consideradas estratégias políticas de luta por direitos, podem ser interpretadas diante do direito estatal. Para tanto, fizemos uma pesquisa documental e empírica. Realizamos observação participante e entrevistas junto a uma comunidade indígena do Povo Tapeba, e analisamos documentos publicados por povos indígenas que realizaram uma dessas práticas ou ambas, especialmente os povos indígenas Tapeba (do Ceará) e Munduruku (do Pará). Os resultados indicam que as retomadas e autodemarcações são estratégias político-jurídicas de luta por direitos, podendo ser juridicamente defensáveis, a partir de perspectivas insurgentes, críticas e interculturais do Direito. De fato, o tema engloba questões ainda mais complexas, que passam pela discussão sobre a autonomia e a autodeterminação desses povos frente aos estados nacionais, e pela reflexão sobre quem determina e como devem ser exercidos os direitos territoriais indígenas.
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