Este artigo descreve e analisa a operação de "tribunais do crime", implementados por facções criminosas nas periferias da cidade de São Paulo. Argumento que a disseminação desse dispositivo, hoje "institucionalizado" nos territórios estudados, somente se tornou possível depois de o "mundo do crime" ter ascendido à posição de instância normativa legítima entre parcela minoritária, mas relevante, dos moradores das periferias urbanas. Esse fenômeno remete, no mínimo, a três décadas de transformações ocorridas nas esferas do trabalho, da família, da religião e da ação coletiva, pilares da vida social das periferias urbanas. Mapeando essas transformações amparado por uma etnografia realizada entre 2005 e 2009, argumento que os dispositivos de regulação interna ao "mundo do crime" seriam os fatores explicativos centrais da queda das taxas de homicídio em São Paulo, notável nos anos 2000, e reivindicada publicamente por governos e polícias.
Pensei comigo, escrevendo essas notas: Valdênia era o único elo de relação entre toda aquela gente. Eu mesmo estava ali por seu intermédio." (Notas de campo).Nas últimas três décadas, as ações coletivas de moradores das periferias de São Paulo -e de outras grandes cidades brasileiras -ocuparam invariavelmente um espaço normativo de mediação entre a população mais pobre da cidade, de um lado, e o mundo das instituições políticas, de outro. O evento na Favela do Madalena e a função nele desempenhada por Valdênia expunham com clareza essa condição. Entretanto, se o lócus de atuação dessas ações coletivas permaneceu o mesmo desde os anos 1970, o sentido da mediação que desempenham modificou-se radicalmente, desde então. Ao menos duas linhas de transformações, associadas, sintetizam essa mudança. De um lado, a da transição do regime político dos anos 1980, que nos anos 1990 inseriu subalternamente os movimentos sociais das periferias na política institucional; e, de outro, a transformação expressiva no perfil da população dessas periferias nas últimas décadas, que questionou a capacidade representativa daqueles atores.A aposta deste texto é que o estudo da trajetória mediadora de uma dessas ações coletivas permite colocar essas duas linhas de transformação em relação, iluminando as fronteiras (ou margens) da política contemporânea no Brasil 1 . O artigo toma a trajetória de mais de duas décadas do Cedeca Sapopemba, uma entidade de defesa de direitos da periferia leste de São Paulo, como objeto heurístico dessa reflexão. Argumento que essa relação entre periferias e 1 Discuto a categoria analítica "fronteira" mais adiante e em Feltran (2008). Das e Poole (2008) utilizam a noção de "margens" do Estado moderno em sentido tanto descritivo quanto crítico, recuperando três usos recorrentes do conceito: margens da legalidade oficial; margens da legibilidade estatal (por referência à burocracia escrita); e margens da normalidade (relação entre corpos, lei e disciplina), tendo por referência o biopoder foucaultiano.
No Brasil, as periferias são o centro de duas figurações recentes e dicotômicas: a da violência urbana que pede mais repressão e a do desenvolvimento social, que transformaria pobres em "Classe C". Este ensaio argumenta que a representação da "violência urbana" retirou o centro da "questão social" contemporânea dos "trabalhadores", deslocando-o aos "marginais". A derrocada do universalismo inscrito nesse deslocamento enseja um governo seletivo que recorta a população em distintos graus de "vulnerabilidade" e níveis de "complexidade" da intervenção estatal; como efeito colateral, emergem distintos regimes normativos nas periferias -por exemplo: estatal, do "crime" e religioso -que embora estejam sempre em tensão, encontram coesão no fato de regularem mercados monetarizados. O dinheiro passa a mediar a relação entre os grupos recortados e suas formas de vida que, sob outras perspectivas -a lei ou a moral -estariam em alteridade radical; o consumo emerge como forma de vida comum e a expansão mercantil, aposta de todos, conecta mercados legais e ilegais, inclusive fomentando a violência urbana que pretensamente controlaria. PALAVRAS-CHAVE: Periferias. Violência. Desenvolvimento. Dinheiro. Valor.
The following article analyses micro-scenes of interaction and argues that everyday life plays a critical role in the objectification of categories of difference. Categories are here understood as intervals of plausible meanings-as contents always mutually situated and constructed-within normative ideal boundaries established by routine use. An ethnographic reflection on several empirical situations, three of them discussed here, gives rise to a broader interpretation of how the recent authoritarian reaction in Brazil is based on the categorical construction of ideals regarding gender and state, as well as race, religion, family, class, sexuality and crime, thus serving as a national project. The text cannot of course be expected to discuss all of these categories in detail, with its formal objective to discuss the politics of their simultaneous production in the course of contemporary social life, that is, how the aesthetic of their emergence in everyday life impacts on the construction of the broader political scene. This text is the partial result of a broader investigation into the everyday lives of groups that are strongly marginalised in São Paulo.
Durante o regime militar brasileiro, uma fronteira nítida distinguia os grupos sociais oficialmente legítimos daqueles a serem banidos da convivência pública. Cabia ao Estado legislar sobre essa distinção e à repressão oficial manter esta fronteira ativa, impedindo que a pluralidade da sociedade fosse representada politicamente. O bloqueio seletivo do acesso à legitimidade pública desenhava a face autoritária do sistema político. Até por isso, foi só durante a decadência do regime militar que alguns dos segmentos sociais reprimidos puderam se articular, ainda que fossem muito distintos entre si, em torno da reivindicação comum de espaços de expressão política. Os principais atores populares desta reivindicação foram chamados de "novos movimentos sociais"
scite is a Brooklyn-based organization that helps researchers better discover and understand research articles through Smart Citations–citations that display the context of the citation and describe whether the article provides supporting or contrasting evidence. scite is used by students and researchers from around the world and is funded in part by the National Science Foundation and the National Institute on Drug Abuse of the National Institutes of Health.