A partir da análise processos judiciais que colocam em questão a tradicional classificação dos animais como coisas nos sistemas jurídicos ocidentais, o artigo apresenta uma reflexão sobre a fabricação jurídica de pessoas e coisas, bem como sobre o papel que a ciência tem sido chamada a desempenhar nesse contexto. O primeiro processo é um pedido de habeas corpus em favor de duas chimpanzés. O segundo tem como escopo o reconhecimento jurídico de um chimpanzé como pessoa humana. Ao propor que a oposição jurídica fundamental entre pessoa e coisa tem como corolário a homogeneização da diferença, a análise sugere que o problema suscitado pelas demandas de reconhecimento de seres vivos não humanos como sujeitos de direitos está em definir - e, assim, trazer à existência - modos de diferir que se distinguem daqueles que o direito reconhece e normatiza
By focusing on lawsuits in which the long-established categorization of animals as things is at stake, this paper aims to attain a better understanding of the legal fabrication of persons and things, and the role that science lately plays in this context. The first case is an application for habeas corpus on behalf of two female chimpanzees. The scope of the second one is the acknowledgement of a male chimpanzee as a (human) person. It is argued that one corollary of the legal opposition person/thing is the homogenization of difference. Therefore, the problem involved in the recognition of animals as subjects of rights seems to be how to conceptually fabricate - and thereby bring into existence - another difference, i.e., a difference that does not fit in the traditional modes of legal differentiatio
Piero de Camargo Leirner Professor do Departamento de Ciências Sociais -UFSCAR e NAU/ USPRESUMO: Este artigo pretende discutir algumas questões que envolvem a análise antropológica do Estado, tomando como base duas experiências etnográficas distintas: uma pesquisa com o exército, outra com órgãos de defesa do consumidor. Com esse objetivo, desenvolve-se uma reflexão preliminar sobre problemas teóricos e metodológicos relacionados ao estudo de objetos dessa natureza em nossa sociedade. PALAVRAS-CHAVE: Estado, Antropologia Urbana, EtnografiaO interesse da antropologia brasileira pelo estudo etnográfico de setores que compreendem o universo do Estado é recente 1 . Nos últimos anos, porém, o surgimento de trabalhos ainda esparsos, de pesquisadores geralmente jovens e em fase de formação, começa a delinear uma tendência crescente de realização de pesquisas com setores da burocracia estatal 2 . A perspectiva etnográfica que os caracteriza, assim como suas preocupações teóricas, conferem a esses novos estudos antropológicos -ou, pelo menos, a boa parte deles -um caráter marcadamente diferenciado em relação às abordagens mais características da sociologia e da ciência política nas suas análises do Estado brasileiro. Embora distantes no tempo e no espaço dos clássicos da "antropologia política" da década de 1940, esses trabalhos respiram algo de sua inspiração.
A impossibilidade de transposição automática para o contexto urbano dos procedimentos mais tradicionais da pesquisa antropológica conduziu muitas vezes a um deslizamento peculiar no que diz respeito aos objetos enfocados. No estudo de sociedades distantes da sua, os antropólogos procuraram conscientemente privilegiar as instituições e fenômenos mais mobilizadores da dinâmica social nativa.Ao se voltar ao estudo de sua própria sociedade, porém, dedicaram-se preferencialmente a processos mais ou menos circunscritos, pequenos grupos étnicos e religiosos, movimentos sociais minoritários ou condutas desviantes. Sem minimizar a importância desses estudos, é necessário reconhecer que as instituições e processos mais abrangentes e imperativos de nossa experiência social -sobretudo os que constituem o universo do Estado -permaneceram quase sempre fora do horizonte da chamada antropologia urbana.Somente nos últimos anos tem avançado entre os antropólogos brasileiros o interesse pelo estudo etnográfico de diferentes aspectos da organização estatal, dos processos eleitorais, do ordenamento jurídico e de diferentes carreiras do funcionalismo público. Os problemas metodológicos que acompanham essa mudança de foco, para os quais a experiência acumulada nos contextos mais tradicionais de pesquisa nem sempre pode oferecer uma resposta adequada, têm sido enfrentados de modo individual, conforme as circunstâncias específicas de cada experiência de campo. No entanto, ainda que não seja possível definir procedimentos igualmente válidos para todas as situações de pesquisa, parece-me oportuno colocar em discussão algumas dificuldades recorrentes.O objetivo deste artigo é abordar um aspecto aparentemente secundário da experiência etnográfica, mas cujas implicações se desdobram em diferentes planos.
A reflexão sobre como o direito elabora a categoria de pessoa, em diferentes universos sociais, não é nova na antropologia. O privilégio analítico costumeiramente conferido às modalidades de construção da pessoa, porém, tende a reafirmar implicitamente o fundamento por excelência dos sistemas jurídicos ocidentais: uma fronteira naturalizada e, portanto, assumida como não problemática, entre pessoas e coisas. Uma melhor compreensão das maneiras pelas quais o direito constitui o mundo ao qual suas disposições se aplicam -em particular no que diz respeito às técnicas jurídicas de personificação (e de reificação) -parece exigir, ao contrário, que essa divisão não seja assumida como uma premissa, cuja consequência imediata é restringir a análise à busca de expressões particulares de uma distinção cuja existência e implicações não são questionadas (cf. Pottage 2004).Com esse ponto de partida, meu objetivo é refletir sobre algumas formas de constituição e distinção de pessoas e coisas quando se trata de considerar juridicamente o ser humano após a morte, tendo como referên-cia julgamentos de tribunais estaduais brasileiros. As decisões analisadas evidenciam que, no âmbito dos processos judiciais, pessoas e coisas não são categorias estáveis ou mutuamente excludentes. A categorização de um ente como pessoa ou coisa depende de uma distinção contingente operada no exame de situações particulares, tanto à luz da legislação quanto de valores oriundos da experiência social dos julgadores e sedimentados sob a forma de técnica especializada na doutrina e na jurisprudência. Se a integridade do organismo humano vivo, cujas fronteiras parecem autoevidentes, pode sustentar a assimilação simbólica entre o corpo individual e a pessoa como sujeito (Strathern 2005:116), a morte torna tal equação ambígua e favorece a emergência de outros arranjos. A disjunção entre corpo e agência permite, como se verá, que as técnicas jurídicas estabeleçam diferentes graus de reificação do cadáver e/ou de suas partes, assim como a fabricação de
RESUMO: Este artigo apresenta uma etnografia do processo de decisão sobre o estabelecimento de ações afirmativas na Universidade Federal do Paraná, enfocando particularmente as sessões do Conselho Universitário que culminaram com a aprovação de um Plano de Metas de Inclusão Racial e Social na instituição. Ao situar empiricamente o tema das cotas nas universidades, torna-se possível incorporar novos elementos à reflexão sobre as polí-ticas públicas de ação afirmativa, bem como identificar princípios subjacentes à dinâmica da formulação de normas institucionais numa instância específi-ca do setor público. A análise do material etnográfico sugere uma aproximação com a lógica do sacrifício, tal como descrita por Marcel Mauss. PALAVRAS-CHAVE: políticas públicas, sistema de cotas, universidade.O estabelecimento das chamadas políticas de ação afirmativa evidencia a complexidade da articulação lógica e política entre o princípio da igualdade, atributo básico da cidadania no ordenamento jurídico dos Estados democráticos contemporâneos, e a consideração das diferenças entre grupos e/ou segmentos sociais específicos, seja em termos de eqüidade de tratamento ou pela afirmação da alteridade étnica ou cultural como um valor. Por esse aspecto, a implantação de cotas para o ingresso de
Resumo Com base em sentenças sem precedentes de tribunais argentinos, que constituíram a orangotanga Sandra e a chimpanzé Cecília como “pessoas não humanas” titulares de direitos fundamentais, o artigo aborda as condições de emergência de novas formas de existência no universo jurídico. Se nos dois casos o reconhecimento da sensibilidade dos animais ao sofrimento desempenhou um papel decisivo, busco argumentar que essas sentenças envolveram - simultânea, sucessiva ou alternadamente - concepções distintas de direito e dos direitos, assim como percursos e operações diversas. Como resultado de uma ampla experimentação sobre as conjugações possíveis de direitos e sujeitos, pessoas e coisas, formas de existência institucionais e não institucionais, Sandra e Cecília se tornaram pessoas diferentes, entre si e em relação às pessoas (e coisas) preexistentes no mundo do direito, evidenciando a ambiguidade conceitual e pragmática do dualismo básico dos sistemas jurídicos modernos.
A constituição de um campo na antropologia brasileira denominado como "relações humano-animal" é recente, mas se consolida e se expande a passos largos. Na última década, aparecem mais de duas dezenas de dissertações e teses, diversos artigos e mais de meia dúzia de dossiês especiais em importantes periódicos de circulação nacional e internacional, livros, coletâneas e mais uma quantidade signifi cativa de grupos de trabalho, simpósios especiais, mesas-redondas e conferências em eventos realizados no Brasil e nos países vizinhos. Interfaces no interior da disciplina também são presentes, como a presença animal na antropologia da ciência e da técnica, nos estudos sobre moralidade, na antropologia rural, na etnologia indígena e na antropologia urbana, para falar do que tem sido mais evidente. Etnografi as têm discutido a pecuária e o consumo humano de produtos de origem animal, a caça e a pesca e suas técnicas, a proteção animal e os desafi os do campo jurídico ou a relação entre animais, ciência, saúde e estética. Além disso, a relação homem-animal têm reconfi gurado a etnologia indígena no universo ameríndio em recentes tendências em tratar o animal como chave para estabelecer os contornos da humanidade, sobretudo em regimes onde predação é um dispositivo relacional e constitutivo.
Com base na descrição etnográfica do processo administrativo instaurado a partir do sumiço de uma cafeteira em um órgão público federal, este artigo propõe que a transposição ponderada e criativa da distância entre o esquematismo das fórmulas burocráticas e a complexidade das situações às quais elas se dirigem é tão constitutiva da burocracia quanto suas expressões mais bizarras, cuja insensatez anedótica frequentemente resulta em violência e injustiça. No caso em questão, cuja análise integra um estudo mais amplo sobre práticas burocráticas e procedimentos disciplinares na administração pública, dois aspectos se sobressaem: de um lado, as prescrições normativas conferem ao processo um impulso próprio, que prenuncia sanções aos servidores formalmente implicados no desaparecimento do bem; de outro, e ao mesmo tempo, sua tramitação desencadeia um investimento cuidadoso de diferentes atores e instâncias para conter um movimento cego em direção a resultados indesejáveis. Essas condições permitem problematizar a consideração usual da discricionariedade no serviço público – que chamarei de discernimento, aproximando-me de certo uso nativo – como expressão de autonomia ou arbítrio individual. Em vez disso, a etnografia realça o caráter intrinsecamente coletivo do discernimento burocrático, sem o qual a efetivação consequente das normas não seria possível.
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