“…Havia, então, um duplo processo de tradução: do airo-pai para o espanhol, e da linguagem dos seres celestiais para a linguagem cotidiana. Por meio das suas explicações espontâneas, percebi que eles queriam que eu entendesse o canto para além das palavras, pois tudo o que os seres celestiais falam é um "conselho", que deve ser visualizado pelos meninos aprendizes.Escutar a fala dos seres celestiais, ver as visões que eles narram nos seus cantos e aprender por meio delas são aspectos inseparáveis.Como demonstram etnografias mais recentessobre o perspectivismo dos cantos xamânicos ameríndios(Lagrou 2018;Cesarino 2018), a exegese airo-pai de seus próprios cantos revela um conhecimento reflexivo sobre os processos de se tornar outro e os equívocos que surgem na passagem de uma perspectiva para a outra inerente a esses processos. Os homens airo-pai, com quem eu tive a sorte de aprender, também tinham um fascinante metaconhecimento sobre seus modos de conhecer, de ser, de falar, de ver e de ser visto nos dois "lados" da dobra cósmica.Com eles, eu aprendi que, nos cantos da puberdade masculina, há vários tipos de ensinamentos.Há os conselhos dos seres celestiais e também o ensinamento da exegese desses cantos e dos procedimentos linguísticos, que possibilitam uma dobradiça cósmica de tradução entre os "lados".Para poder mostrar essa relação entre as palavras do canto, o que essas palavras ensinam e como elas ensinam a traduzir essas palavras, utilizei uma tabela, disponível no Apêndice.…”