Era preciso continuar decifrando nos vestígios do tempo os sentidos de tudo que ficara para trás. E perceber que, por baixo da assinatura do próprio punho, outras letras e marcas havia. A vida era um tempo misturado do antesagora-depois-e-do-depois-ainda. A vida era uma mistura de todos e de tudo. Dos que foram, dos que estavam sendo e dos que viriam a ser". Ponciá Vicêncio, Conceição Evaristo "O sangue do passado corre feito um rio. Corre nos sonhos, primeiro. Depois, chega galopando, como se andasse a cavalo". Torto arado, Itamar Vieira Júnior "O leitor verá que o tempo passou e não passou"." Cultura e política, 1964-1969 Ao Dani, que com a força que viveu o presente, soube fazer-se futuro naqueles que ficaram.A todas aquelas e todos aqueles cujas vidas foram ceifadas pela violência de Estado, ontem e hoje.
EU E AS/OS OUTRAS/OS: TEMPO DE AGRADECERSeria possível dizer que esta tese existe, em primeiro lugar, no tempo de uma pandemia global e de um luto compartilhado e vivido ao redor do mundo. Foi majoritariamente escrita nesse momento, quando o meu corpo se encontrava no máximo de confinamento que já havia experimentado. Sem futuro previsto, sem nenhuma certeza, cercada de muita morte, muita dor e muito desamparo, a escrita se deu, então, como uma metáfora dessa clausura no tempo do trauma em que estamos lançados. O choque do presente, não poderia ser diferente, incide diretamente nesta escrita.Poderia ir atrás: atribuir o começo desta tese a quando eu mesma não entendia o que tinha sido a ditadura militar. Filha de pais historiadores e militantes -Lorena Gill e Antônio Cruz -, desde cedo introduzida ao sonhar junto nos partidos, nos sindicatos, nas universidades, não me lembro de quando me disseram o que havia sido a ditadura. Quem sabe tenham me dito, em algum momento, que viveram uma ditadura quando jovens, que foram educados sobre a Moral e Cívica, que sentiram efeitos da ditadura no início da militância estudantil, que os meus avós, provavelmente, não tiveram as suas vidas muito modificadas pelo fato de que o país vivia o autoritarismo, mas o fato é que não me recordo exatamente. Do que me lembro: a esperança infantil. Lembro-me, sobretudo, de uma sede de futuro compartilhada na infância, de crescer entre crianças que sentiam que quase podiam tocá-lo, acompanhado de uma promessa de país nunca exatamente alcançada. Ali, havia pouco espaço para o passado. Assim, uma parte desta tese, talvez, seja uma tentativa de recuperar essa sensação tão presente na infância e na adolescência, transmitida em outro tempo, quem sabe mesmo antes que eu estivesse por aqui.Ou, outro início: diante da produção de Márcio Seligmann-Silva, na época um autor cujo trabalho eu acompanhava desde a graduação na Universidade Federal de Pelotas, encontrei um caminho por onde seguir. Depois, como sua orientanda de mestrado e doutorado, foi caminhando junto desse professor que me formei, amadureci e com quem aprendi muito e tive liberdade para encontrar os meus próprios percursos para construir, aqui, uma linha de raciocínio que passa pelo...