Após a visita da indesejada das gentes: luto e memória na Revista Estudos Feministas (2001-2014)

Abstract

Resumo Os obituários no interior das revistas acadêmicas brasileiras apresentam-se de forma diversa. Desde parágrafos padronizados que buscam simplesmente informar ao público leitor, delimitado pela área de pesquisa ou interesse específico da publicação, enquanto “notícia de falecimento”, até o texto mais elaborado, que busca apresentar o perfil de um predecessor ou igual que construiu uma obra e estabeleceu vínculos com seus pares. A Revista Estudos Feministas (REF), atualmente editada na Universidade Federal de Santa Catarina, foi lançada em 1992, e vem ocupando ao longo dos anos uma posição de destaque como publicação pioneira e privilegiada para a divulgação de estudos feministas e de gênero em diversas áreas disciplinares no país. Desde 2001 seus números estão disponibilizados no Scielo, e nesse acervo encontram-se acessíveis quase duas dezenas de homenagens fúnebres, na forma de obituários, publicação de entrevistas póstumas ou ensaios. Buscamos discutir como esse conjunto de textos apresenta uma natureza biográfica e caracteriza uma memória grupal construída e reivindicada, na qual as dimensões de luto e as relações intelectuais e institucionais de uma publicação acadêmica permitem equacionar a dor da perda no universo simbólico do grupo.

Quais vidas são choráveis?

“…Então, quase sempre normativo, o obituário torna-se a exigência social do luto e das obrigações políticas do pertencimento (Silva, 2019). Ao escutar ou ler uma nota de falecimento nos conectamos atentas/os à informação transmitida.…”

“…Esses discursos epidícticos, como obituários, memoriais, relicários e epitáfios, formam uma retórica fúnebre com a finalidade de tornar pública a morte da pessoa e de expressar o luto (Silva, 2019) por aquela que fora uma vida legitimada e reconhecida. Esse ato é capaz de criar uma dimensão política e coletiva de identificação, de empatia e do direito de viver o luto, especialmente quando há interdições aos rituais fúnebres, tal como as promovidas pela pandemia da Covid-19 ou quando não há corpo para ser velado, nos casos de desaparecimento.…”

“…A pesquisadora, antropóloga e professora brasileira Débora Diniz, responsável pelos textos de cada postagem, comenta em uma das legendas (Figura 1) que a página "não será um obituário, pois não conhecemos as pessoas". Contudo, o perfil aproxima-se do que se entende por obituário, pois tem como características as narrativas biográficas e relatos abreviados de memórias coletivas, individuais e sociais, que se corporificam a partir de relações particulares com o tempo e o espaço (Silva, 2019); além disso, como já destacado, oferece a compreensão da fragilidade e da mortalidade da vida. O obituário inaugural postado no perfil @reliquia.rum foi uma imagem figurativa da primeira pessoa morta por Covid-19 no Brasil: uma mulher, 63 anos, moradora de Miguel Pereira, no estado do Rio de Janeiro, a 124km da capital, onde trabalhava como empregada doméstica.…”