Eu não acreditava em nada menos do que fazer um livro, quando comecei a obra que se segue. Um dia antes, encontrava-me na casa para onde se havia levado o negro branco que atualmente está em Paris. Asseguraram-nos que essa criança nascera de pais bem negros e todos raciocinaram interminavelmente sobre esse prodígio. Uma pessoa da companhia, a quem nada posso recusar, quis que eu colocasse meus pensamentos sobre isso por escrito. Eles se multiplicaram até produzir um volume bastante espesso e no qual, talvez, se ache que eu ainda não expliquei inteiramente o fato que estava em questão.A mesma pessoa para quem eu havia escrito exigiu ainda de mim algo mais difícil ou, pelo menos, mais perigoso: entregar a obra ao impressor. Nisso consenti; não tive amor próprio o bastante para recusá-lo. A única fraqueza foi a de não ousar nela colocar meu nome. E, com efeito, parece-me que teria sido temerário dela declarar-me o autor em um tempo em que se nos quer proibir toda operação do espírito e no qual um poderoso partido 2 tenta provar que não sabemos escrever nem devemos sabê-lo. Eu temia disso oferecer uma nova prova.Não obstante o espírito de partido, não me impedi de fazer uso das observações que encontrei nos bons autores, quaisquer que fossem. Quando elas estavam escritas em latim, um jovem doutor em medicina, 3 que me fez prometer que jamais o nomearia, fez-me o obséquio de traduzi-las.Eu teria ganhado em todos os sentidos em permanecer desconhecido, se não fosse preciso, para isso, renunciar à satisfação de dedicar esta obra a um homem ilustre a quem devo tudo. 4 Seria antes nomeá-lo, falar da superioridade de seu mérito e do lugar que ele ocupa: mas falar das obrigações que lhe temos não é fazer-se conhecer: é confundir-se com a multidão. V Ê N U S F Í S I C A P R I M E I R A P A R T E, sobre a origem dos animais CAPÍTULO PRIMEIRO Exposição desta obraRecebemos, apenas há pouco tempo, uma vida que iremos perder. Colocados entre dois instantes, dos quais um nos viu nascer e o outro nos verá morrer, tentamos em vão estender nosso ser para além desses limites: seríamos mais sábios se nos aplicásse-mos apenas em melhor preencher o intervalo.Não podendo tornar mais longo o tempo de nossa vida, o amor próprio e a curiosidade querem suplementá-lo concedendo-nos os tempos que virão quando não mais seremos e os que transcorreram quando ainda não existíamos. Vã esperança à qual se junta uma nova ilusão! Cremos que um desses tempos nos pertence mais que o outro. Pouco curiosos sobre o passado, interrogamos com avidez aqueles que nos prometem ensinar alguma coisa sobre o futuro.Os homens se persuadem mais facilmente que após sua morte devem comparecer ao tribunal de um Radamante do que creriam ter antes de seu nascimento combatido contra Menelau no cerco de Tróia. (i) 5 Entretanto, a obscuridade é a mesma sobre o futuro que sobre o passado; e se se considera as coisas com uma tranqüilidade filosófica, o interesse deveria ser também o mesmo: é tão pouco razoável afligir-se por morrer muito cedo, quanto seria ridículo queix...
CARTA XIV Sobre a geração dos animaisOs antigos acreditavam que o homem e a mulher tinham uma participação igual na obra da geração, que o feto era formado na matriz pela mistura dos licores seminais dos dois sexos sem que soubessem e sem que se preocupassem muito em investigar como a coisa se produzia.A dificuldade para compreender como um corpo organizado podia formar-se fez os físicos modernos acreditar em que todos os animais, todas as plantas e todos os corpos organizados eram tão antigos quanto o mundo; que, totalmente formados em De modo algum examino se esta opinião tem efetivamente algo de mais filosófi-ca do que aquela que admite novas formações; se, reconhecendo a ação de Deus como necessária para a formação dos animais, é mais simples conceber que Ele tenha criado no mesmo instante todos os indivíduos do que pensar que os criou em tempos sucessivos; se se pode mesmo dizer que haja para Deus alguma sucessão de tempo. Ver-se-á, creio, examinando essas questões, que o sistema dos desenvolvimentos não possui nenhuma vantagem real, sem falar da dificuldade em que se encontra em sustentar tantas ordens inconcebíveis de pequenez real em todos esses seres organizados contidos ao infinito uns dentro dos outros.Partindo, entretanto, desse princípio de uma formação simultânea de todos os indivíduos, os filósofos modernos dividiram-se em duas opiniões e formaram dois sistemas.Uns, considerando que todo um gênero de animais saia do ovo, acreditaram que todos os animais deviam ter a mesma origem; e olhos predispostos por essa idéia viram ovos no que até então havia sido tomado apenas como os testículos da mulher e das fêmeas dos animais quadrúpedes. Outros, tendo descoberto ao microscópio pequenos corpos animados nas sementes dos machos, de modo algum duvidaram que esses corpos fossem os próprios animais que deveriam nascer. Alguns destes últimos, admitindo ainda os ovos, os consideraram apenas como o domicílio e o alimento do pequeno animal que ali se aloja; os outros negaram absolutamente os ovos e acreditaram que o animálculo, depositado na matriz, nela encontrava todo o alimento que precisava.Eis, então, num desses sistemas, todos os homens contidos de mãe em mãe no ovário da primeira mulher; no outro, ei-los todos contidos de pai em pai na semente do primeiro homem. Todas as gerações ou, a partir desses autores, esses armazéns do gênero humano foram e serão apenas desenvolvimentos.Encontramo-nos hoje obrigados a abandonar esses dois sistemas, que raciocí-nios precipitados e experiências feitas incompletamente nos haviam feito adotar. Um autor, tão grande físico quanto espírito vasto e profundo, acaba de provar, através de observações incontestáveis, que o ovo da mulher e dos quadrúpedes era uma quimera e que o animálculo espermático não poderia ser o feto.Esse pretenso ovo que, após a fecundação, deveria destacar-se do ovário e ser conduzido à matriz pelas trompas de Falópio, o Sr. de Buffon, após havê-lo procurado com esse olho ao qual nada escapa, viu que ele não existia e descobriu um outro fenô-meno. Na é...
IXOs filósofos que não quiseram admitir nem as naturezas plásticas nem as naturezas inteligentes, para explicar a formação dos corpos organizados, limitaram-se a considerar todos esses corpos, todas as plantas, todos os animais, como tão antigos quanto o mundo; ou seja, que tudo isso que tomamos nesse gênero como novas produções eram apenas desenvolvimentos e crescimentos de partes cuja pequenez havia até então mantido ocultas. 2 Pois já não cito os esforços de Descartes e de alguns de seus discípulos para explicar apenas através da extensão e do movimento a formação dos animais e do homem. 3 X Através desse sistema da formação simultânea, que não exigia senão o desenvolvimento sucessivo e o crescimento das partes de indivíduos inteiramente formados e contidos uns dentro dos outros, acreditou-se estar preparado para resolver todas as dificuldades. Estava-se apenas embaraçado em saber onde colocar esses depósitos inesgotáveis de indivíduos. Alguns os colocaram em um sexo, outros no outro; e todos ficaram durante muito tempo contentes com suas ideias. XIEntretanto, se se examina com mais atenção esse sistema, vê-se que, no fundo, ele nada explica. Supor todos os indivíduos formados pela vontade do Criador em um mesmo dia da criação é antes contar um milagre do que oferecer uma explicação física. Também não se ganha nada dessa simultaneidade, pois o que nos parece sucessivo é sempre simultâneo para Deus. Enfim, as experiências mais exatas e os fenômenos mais decisivos demonstram que não se pode admitir essa série infinita de indivíduos nem em um sexo nem no outro, e derrubam o sistema de cima a baixo. XIISe dissermos que cada corpo organizado, cada planta, cada animal, no momento em que aparece a nossos olhos, é a obra imediata do Criador, os que pretendem que todos esses indivíduos tenham sido criados ao mesmo tempo não teriam qualquer vantagem sobre nós e teriam ainda a dificuldade de conceber esse número incontável de corpos organizados contidos uns dentro dos outros. Mas, como acabamos de dizer, estas não são explicações. XIIITalvez a exposição, que acabamos de fazer dos sistemas aos quais se foi obrigado a recorrer, disponha nossos leitores a julgar o nosso com mais indulgência. Em todo 477 Sistema da natureza. Ensaio sobre a formação dos corpos organizados scientiae zudia, São Paulo, v. 7, n. 3, p. 2009 caso, não pretendemos seguramente oferecê-lo nem como provado nem como resguardado de todas as objeções. Em uma matéria tão tenebrosa, estaremos satisfeitos se o que propusermos estiver sujeito a menos dificuldades, ou menos distante da verossimilhança, do que propuseram os outros. XIVUma atração uniforme e cega, difundida em todas as partes da matéria, não pode servir para explicar como essas partes arranjam-se para formar o corpo cuja organização é a mais simples. Se todas têm a mesma tendência, a mesma força para unirem-se umas às outras, por que estas vão formar o olho, por que aquelas a orelha? Por que esse maravilhoso arranjo? E por que não se unem todas elas confusamente? Se se quer dizer sobre isso...
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