Professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional -UFRJ RESUMO: O objetivo último deste texto é refletir sobre a possibilidade de manter o ponto de vista antropológico tradicional, quando o objeto observado faz parte do coração da sociedade do observador. Essa reflexão é efetuada por meio de um confronto entre algumas discussões mais ou menos clássicas sobre a observação antropológica e minha experiência de campo, pesquisando eleições e participação política dos movimentos negros em Ilhéus, no sul da Bahia. Deixando de lado qualquer preocupação normativa, trata-se, através desse confronto, de tentar equacionar uma série de questões cruciais para a antropologia contemporânea: será efetivamente possível assumir um olhar distanciado em relação a algo tão central para o observador quanto a democracia representativa? De que forma e seguindo que procedimentos? Existe alguma diferença entre estudar um grupo de " crentes" (no candomblé, por exemplo) sendo " cético" e um grupo de "céticos" (na política, por exemplo) sendo " crente" ? As supostas diferenças de escala entre objetos, grupos ou sociedades devem inevitavelmente afetar os procedimentos de pesquisa? PALAVRAS-CHAVE: etnografia, trabalho de campo, política, movimento negro, Bahia.
Escutando Louis Armstrong […], eu podia ouvir os espíritos mascarados falando, cantando, no modo como ele fazia soar esse instrumento europeu ocidental. Chinua Achebe O dom e a iniciaçãoComo em qualquer campo de estudos, naqueles chamados de afro-brasileiros e, mais particularmente, no das religiões de matriz africana, existem alguns temas que parecem atrair a atenção dos pesquisadores e, por vezes, dos fiéis. Um deles é, sem dúvida, o das relações entre o que, nessas religiões, seria considerado como da ordem do "dom" e aquilo que elas pensam derivar do campo da "iniciação". Ou seja, relações entre o que o sujeito recebe independente de sua vontade e de suas ações -o "dado", como se costuma dizer -e o que depende de um conjunto de rituais mais ou menos tradicionais, que só podem ser desempenhados com o consentimento do sujeito e sob a condução de iniciados mais antigos do que ele -ou seja, aquilo que é "feito".No entanto, entre os diversos temas que concentraram a atenção daqueles que estudaram as religiões de matriz africana no Brasil desde seu início, este possui uma relativa particularidade. Por um lado, o tema parece apresentar certa dificuldade "técnica" para os antropólogos, que não sabem muito bem se devem alinhá-lo do lado dos "fatos" (isto é, daquilo que, para nós, costuma ser o "dado") ou das "teorias" (os nossos "feitos"), como veremos adiante. Por outro lado, "o dom e a iniciação" afiguram-se também como objetos de atenção, reflexão e debate para os próprios fiéis -e isto em um duplo sentido: primeiro, porque se trata de uma questão cuja autenticidade, em tese, pode ou não ser atestada em casos concretos; em segundo, porque é objeto de constantes considerações abstratas e reflexivas. *
Starting with the axiom that, for anthropology, the only relevant epistemologies and ontologies are those offered by the peoples we work with, this article offers a sketch of the current debate around the once famous ideas of 'fetish' and 'fetishism'. Focusing on the way that this debate has been extended in studies of Afro-Brazilian religions, the argument employs fieldwork and bibliographic data from one of these religions, candomblé, in order to present a native theory of the creative process underlying what has been baptized with the strange names 'fetish' and 'fetishism'. In short, this native theory holds that the creative process consists more in the actualization of already existing virtualities contained in beings and objects in the world than in the model of ex nihilo production, which is characteristic of our dominant Judeo-Christian and capitalist cosmologies.As a mixture of mistaken knowledge or ideology, illusory reality, and ethnographic peculiarity, fetishism is always situated at the confluence of three fields: epistemology, ontology, and anthropology. The word itself consists, as is well known, in an elaboration of the term 'fetish', coined in the sixteenth and seventeenth centuries by Portuguese and Dutch sailors and merchants who traveled the west coast of Africa. It was a term used to designate material objects that 'the Africans' made and then, having strangely imbued them with supposedly mystical or religious properties, went on to worship. The first theoretical use of the term was by Charles de Brosses in 1760, when he characterized it as the "first religion of humanity." From the nineteenth century onward, the term follows a curious path. It was used as a central concept by some of the
Há mais de dez anos, uma estudante de Mestrado em antropologia social defendeu uma dissertação sobre um grupo de pessoas do extremo-sul baiano que não apenas se pensam (no sentido forte da palavra) como "afroindí-genas", como desenvolvem uma série de complexas reflexões sobre essa expressão e sobre a sua própria situação no mundo. Mesmo reconhecendo a qualidade da dissertação, os examinadores levantaram dúvidas sobre o alcance do termo e sobre a natureza das reflexões do grupo. Por um lado, argumentando com o caráter apenas "local" do processo estudado, sua suposta incapacidade de produzir efeitos mais "globais". Por outro, com toda a delicadeza, sugerindo que a autora teria projetado suas pró-prias ideias no discurso do grupo estudado.De fato, nem o material etnográfico, nem a análise de Cecília Mello (ver, também, MELLO 2003 e 2010) se acomodavam bem a um certo clichê que ainda domina o pensamento antropológico, mas que parece cada vez mais difícil de ser sustentado: a certeza de que não temos nada de importante a aprender com as pessoas com quem convivemos durante nossas pesquisas. E isso seja porque elas realmente não seriam capazes de nos ensinar nada, seja porque aquilo que eventualmente nos ensinam é de curto alcance, limitado ao contexto paroquial em que vivem.No entanto, em lugar de pretender "revelar" o que seus amigos do Movimento Cultural Arte Manha e do Umbandaum: Grupo Afroindígena de Antropologia Cultural, sediados na pequena cidade de Caravelas, no extremo-sul baiano, estariam "realmente" querendo dizer ao se afirmarem afroindígenas, a antropóloga preferiu seguir de modo detalhado e profundo o que eles efetivamente dizem, fazem e pensam a respeito de si mesmos, dos outros e dos mundos de que participam.Ela pôde aprender, assim, que "afroindíge-na" quer dizer muitas coisas, "uma origem mí-tica, um modo de descendência e uma forma de expressão artística" (MELLO, 2003, p. 73). Que não se trata de uma simples "justaposição de duas influências ou formas de expressão […] distintas e irredutíveis", mas de "uma terceira forma, com características próprias". Que a "relação que o grupo estabelece entre afros e indígenas é não apenas uma relação de proximidade entre dois mundos paralelos", mas "uma fusão ou intersecção entre esses dois mundos" (MELLO, 2003, p. 96). Finalmente, que o conceito foi elaborado com as mesmas técnicas utilizadas na elaboração de obras de arte. Em suma, que ele mesmo é "uma 'técnica de reaproveitamento ou de reatualização por bricolage" (MELLO, 2003, p. 102) das experiências históricas vividas de diferentes maneiras pelos membros do grupo como afros e como indí-genas. Observando que o conceito é sempre "acionado em relação a determinadas circunstâncias e se refere a uma forma de expressão ou linguagem e não a uma identidade ou essên-cia" (donde "seu potencial crítico e político")
Se o escritor é um feiticeiro é porque escrever é um devir, escrever é atravessado por estranhos devires que não são devires-escritor, mas devires-rato, devires-inseto, devires-lobo etc. Gilles Deleuze e Félix Guattari
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