Em dezembro de 2005, depois de dois anos viajando como clandestinos, matriculamos nosso filho na Escola.1 Não que estivéssemos, nesses dois anos, escondidos no porão. Não. A nau é de insensatos generosos. Viajamos no convés, junto a todos, à brisa e a um ou outro tempo ruim. O relato que se vai ler, então, tem esse caráter de quase clandestinidade também: no mesmo barco, mas por ali, sem função específica alguma, sem responsabilidade (quase) nenhuma. Portanto, é bom, desde aqui, deixar claro o que não se deve esperar deste pequeno relato: objetividade; análise crítica; isenção; imparcialidade. Um relato pessoal, somente. Mas existe outra forma de se falar de uma experiência fundante?Conheci um lugar A primeira vez que entrei na Escola foi em abril de 2004. Ana Elisa Siqueira 2 caminhou comigo pelo pátio, pelas salas, foi me mostrando as paredes que já tinha derrubado. Claro que, de cara, simpatizei: no meio de tanta arrogância teorizada, de tanta hegemonia do pedagogês, não é brinquedo encontrar, assim, sem mais nem menos, uma adepta do demolicionismo. Então, Ana Elisa me contou do tempo ainda em que derrubava grades, assim: "A escola precisa ser bonita, precisa ser aberta, precisa mostrar que confia".Fui pra casa contagiado, feliz da vida: daqui não saio, daqui ninguém me tira. Puxa, eu pensava, como são raros hoje os lugares que nos infundem leveza, essa sensação assim de êxtase jubiloso... Em casa, os meninos se espantavam: "Como assim, uma escola totalmente sem paredes? Nem telhado tem?" Não, vejam bem, derrubaram as paredes de algumas salas, que se juntaram, cresceram, claro que tem telhado, e algumas paredes também... O mais novo, cinco anos (na época), entre duas garfadas e desde o alto de sua simplicidade: "Mas isso não tem nada de mais, é assim mesmo que toda escola deveria ser, é assim mesmo que a minha escola é". 3 E eu pensava, mas não dizia (repare-se que estamos jantando, e eu temia fazê-lo engasgar com um tamanho excesso de realidade): "Tudo bem, meu chapinha, mas logo logo você vai ver o moedor de carne em que vai ser gentilmente inserido". Aos amigos doutos, eu punha uma pitadinha de erudição: "Aquilo é um platô, verdadeiro território desejante, essa Ana Elisa é a esquizoanalista dos sonhos de qualquer Deleuze e Guattari (mesmo que a dupla nem sonhasse), a paranóia ali é zero, uma profunda esquizoidice produtiva". E sarava. Fosse como fosse, era só uma justificativa, que a decisão já me tinha tomado: preparei minha trouxinha e fui pôr meu desejo ao abrigo daquele povo. O homem é um ser de necessidades que só se satisfazem socialmente, dizia Enrique Pichón-Rivière.Isso vem e não é de hoje Você vê um barco assim, vento em popa, velas estufadas e, se já fez algum esforço em fazer andar um projeto, percebe que o trabalho não é de ontem, e que a coisa vem de longe. Se a Escola está em pé, mesmo depois de lhe tirarem as paredes, é porque tem alguma outra coisa sustentando. Você decida, mas eu sou de um tempo em que se acreditava em sustentações simbólicas. O esforço, hoje, de retomar o espaço público ...