<p>Este artigo discutirá, a partir da autobiografia de Anderson Herzer, <em>A queda para o alto</em>, a construção de seu gênero, de seu corpo e de sua sexualidade, fundamentalmente, no período que foi interno na Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (Febem) nos anos de 1980 em São Paulo. Salienta-se que essa experiência será marcada por múltiplas violências ainda hoje impostas, em todos os espaços de nossa sociedade, a todos àqueles desviantes da norma cisgênera heteronormativa sedimentada e alimentada pela dominação masculina. Herzer, porém, como um guerreiro em campo de batalha não se sucumbirá às regras que lhes foram determinadas ao nascer; identificado como Sandra até a adolescência se construirá Anderson. Portanto, como um “imigrante de um padrão normativo” viverá sob a pele que habita o estigma de doente, o estigma que carrega o desvirtuador da ordem patriarcal estabelecida. No entanto, subverterá esta ordem e ao (re)ocupar seu corpo, sua identidade, sua sexualidade, ocupará subversivamente o espaço da escrita revelando tanto a sua potente lucidez - contrariando os discursos opressores - quanto aos efeitos tóxicos da dominação masculina na constituição de sua experiência identitária. Dessa forma, se por um lado “desvia da ordem”, por outro, paradoxalmente, a reafirma. Nesta perspectiva, salientamos a importância dessa escrita denúncia, dessa escrita desabafo que de forma engajada revela os dispositivos do poder que nos impõe um <em>modus vivendi</em> que violenta, que oprime que, não raras vezes, leva à morte aquele que desvia da ordem imposta pelo Estado, pela Igreja, pela Ciência e pela Família.</p>
A cada vez, olhar melhor. E falhar melhor na tarefa impossível de conhecer os infinitos particulares. Naná DeLucaAo analisar a produção literária de Franz Kafka (1883-1924, escritor judeu austro-húngaro, e suas reflexões sobre o escrever na língua alemã -a língua do Outro -, Gilles Deleuze e Félix Guattari (1977, p. 25) postulam: "Uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior". Por meio desse enquadramento analítico é possível pensar tanto a artesania do escritor no manejo com a língua do Outro quanto seu engajamento político para inventar um povo que falta em sua obra. Nessa perspectiva, segundo os autores, a arquitetura do texto literário é constituída por três elementos, que conjugados entre si, fazem nascer uma escrita estrangeira, uma escrita própria capaz de fazer delirar seu opressor e por esse meio escapar do sistema dominante: um forte coeficiente de modificação da língua maior; um vínculo com o imediato político; e uma enunciação individual que mobiliza o agenciamento coletivo. O menor, então, emerge em oposição ao maior -opressor -e, nesse sentido, revela-se como um devir-revolucionário, delirante (Deleuze; Guattari, 1977).Trata-se, portanto, de uma perspectiva potente para analisarmos o romance O sexo dos tubarões, de Naná DeLuca (2017), ainda que o contexto de sua produção e as questões que atravessam sua escrita e a instância de sua autoria se distanciem da kafkiana. 1 Kafka produziu sua literatura num contexto em que havia, explicitamente, um projeto antissemita vinculado à expansão e dominação alemã no leste europeu (Oelsner, 2017). DeLuca, por sua vez, ao se reconhecer como pessoa transgênera 2 * Doutoranda no Programa
Resumo Neste artigo, discuto a produção autobiográfica de autoria trans no Brasil contemporâneo como estratégia de resistência e organização. Trata-se de uma produção, pelos critérios metodológicos estabelecidos, nascida em 1982 e avolumada a partir de 2011, compondo um universo de quinze obras até o ano de 2019. Para discutir essas autorrepresentações como instrumento radical de luta e de luto, contextualizo-as no campo literário contemporâneo, que historicamente confirma-se como transfóbico, seja por representações estigmatizadas e estereotipadas dessa identidade e/ou sua ausência, seja pela exclusão de pessoas trans na instância da autoria. Buscando identificar as estratégias de resistência e organização, proponho acessar as obras selecionadas pela analítica do cuíerlombismo, ainda que em distensões. A partir dessa abordagem cartográfica, destaco o narrar-se como um arquivar-se, o que tanto permite a formação, no espaço literário, de uma comunidade de afeto, de partilha, quanto se constituir como política e dever de memória.
Neste artigo discute-se a obra Meu corpo, minha prisão: Autobiografia de um transexual, de Lorys Ádreon (1985), a partir do reconhecimento de que se trata de uma escrita de cárcere. Isso porque, embora a autora não tenha tido a experiência do encarceramento físico numa instituição prisional, desde a mais tenra idade reconhece-se prisioneira de uma compulsoriedade identitária que é reforçada pelos mecanismos de censura e perseguição do Estado brasileiro e seus dispositivos de poder, no contexto da ditadura civil-militar, o que lhe impede de viver livremente como se autorreconhece, uma mulher. A escrita-testemunho realiza-se, como se demonstrará, de modo estratégico pela estética intertextual com o romance oitocentista alencariano, uma vez que ao escrever sobre a sua relação afetiva com o indígena cisheterossexual Oitameno, o faz tanto como comprovação de sua feminilidade, porque objeto do amor romântico e idílico, como pelo pleito a uma outra nação possível para o Brasil, que se comprova, no contexto de sua publicação, um projeto inviável.
RESUMO A produção autobiográfica de autoria trans no Brasil contemporâneo é uma das facetas da literatura trans que, desde 2010, vem conquistando com mais vigor o espaço literário. Neste artigo, tendo em vista a necessidade de um recorte, deter-me-ei nas obras autobiográficas publicadas entre 1998 e 2008, as quais, na abordagem proposta, vêm à tona como enunciações rebeldes em relação ao status apresentado, seja pelo sucesso profissional, no caso de Ruddy Pinho (1998, 2007), seja pelo ativismo, como ocorre com a obra de Claudia Wonder (2008). Ambas promovem a dignidade da existência trans pela autoafirmação e/ou autoidentificação.
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