Tinha estado com os olhos abertos sempre, como se por eles é que a visão tivesse de entrar, e não renascer de dentro, de repente disse, Parece -me que estou a ver, era melhor ser prudente, nem todos os casos são iguais, costuma -se até dizer que não há cegueiras, mas cegos, quando a experiencia dos tempos não tem feito outra coisa que dizer -nos que não há cegos, mas cegueiras […] Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem (Saramago 2016, 342 -44). 1 A intersecionalidade oferece inúmeras oportunidades para interrogar os nossos próprios pontos cegos e transformá -los em recursos analíticos para uma mais profunda análise crítica (K. Davis 2008, 77). 2 A atualidade não se pode dissociar de vivências multideterminadas e sempre presentes. Quer sejamos atravessadas/os por privilégios ou opressões, e sobretudo por ambas, nos mais variados contextos, é impossível minimizar o impacto que estes têm na sedimentação ou desconstrução das relações de poder, na nossa subjetividade e experiências diárias. Partimos da obra de José Saramago, Ensaio sobre a cegueira, que, retratando metaforicamente a sociedade moderna Ocidental destaca, através da sua escrita paradoxal, modos de interação social. De salientar que, num cenário de cegueira, a mulher presente na obra é a que se apresenta com visão mais lúcida -mimetizando uma consciência que simbolicamente representa as/os oprimidas/os -, conhecimento de si e consciência do seu lugar na sociedade. Esta personagem adquire especial destaque por se opor às restantes que dissimulam o seu eu (self) para se conformarem às regras de uma sociedade normalizada. O recurso a este epíteto pretende desafiar cada um/a de nós a refletir sobre as múltiplas cegueiras que nos constrangem quotidianamente.
2No original: «Intersectionality offers endless opportunities for interrogating one's own blind spots and transforming them into analytic resources for further critical analysis».