Uma imagem caminha comigo, há tempos remotos, adormecida, porém viva. Tenho sete anos de idade e estou sentada numa sala muito iluminada, uma luz branca das lâmpadas acesas antes do amanhecer por completo. Sentada, rapidamente afundo-me o quanto posso em minha cadeira, prendo a respiração e abaixo a cabeça sobre os braços na mesa logo adiante. A sensação de angústia e insegurança brilha tão forte e imponente quanto o branco estridente da iluminação da sala de aula. No esforço em recordar o contexto da cena, passo a lembrar que vejo uma outra menina, mesma idade, sentada há poucas cadeiras de distância de mim. Sei que o seu nome é Jaqueline. Olhamo-nos sem graça, em silêncio e em Imagem 1-Elas ainda brincam. (Autoria: Juliane Olivia dos Anjos) v seguida volta novamente a cena da sala branca, a angustia, o afundar na cadeira, a cabeça sobre os braços. Eu e Jaqueline temos um segredo. Compartilhamos da mesma angústia. Em silêncio. Muito esforço ainda foi preciso para trazer à tona a cena completa. Outra garota, Jussara, sai correndo e chorando da sala de aula, antes de meu olhar cruzar com o da Jaqueline. Por mais que tente, já não posso esconder o que une a nós três: não é a idade, não é o nome com a mesma letra inicial. O garoto, Renan, diariamente, segue na fila de entrada do pátio para a sala de aula gritando pelos corredores: "Neguinha preta, toda queimada! Neguinha preta, toda queimada!". Incessante. Ensurdecedor. Em minha memória, as duas filas de crianças de uma primeira série seguem andando pelo corredor escuro sem professora. Seria o mesmo que imaginar um carro andando sem ninguém que o guie. Não faz sentido. Não é real. Hoje entendo que a total cumplicidade da professora com os gritos de Renan a tornaram invisíveis em minha memória. Jussara era uma criança com a pele mais escura que minha e o cabelo mais crespo que o meu. Jaqueline, no entanto, era muito parecida comigo, ainda que eu me esforçasse por imaginá-la com pele mais escura numa tentativa de me ver como o último alvo certeiro da violência distribuída gratuitamente por Renan e pela indiferença de todos os demais. Aqui aprendi a primeira lição do racismo: negros e negras são rivais. A luta, hoje compreendo, é por ser a exceção que irá confirmar a regra. Ou melhor: exemplos para serem usados na confirmação do mito da igualdade racial, a principal engrenagem no crime perfeito que é o racismo brasileiro (MUNANGA, 2009). No dia em que Jussara quebrou o silêncio e correu para pedir ajuda fora da sala de aula aconteceu a cena que carreguei por longos anos sem saber ao certo do que se tratava. E isto só se deu porque Jussara quebrou o silêncio e rebelou-se. Correu. Gritou. Pediu socorro. Em minha emoção já fragilizada e a pouca idade, a atitude de Jussara escancarou o que até então eu não era capaz de entender: que a qualquer momento a violência chegaria certeira e impune contra mim. A fuga de Jussara me virou o estômago, pois eu, de alguma forma, já sabia que não era Renan, o violento. Já tinha entendido que todos concordavam. Compreendi vi outras cenas ...