Números emergentes: temporalidade, métrica e estética da pandemia de Covid-19

Abstract

O artigo apresenta os resultados de uma pesquisa em curso sobre as estatísticas de Covid-19 durante o primeiro ano da pandemia (março de 2020 a fevereiro de 2021) na qual se investigou a relação recíproca entre os números sobre a doença e a própria pandemia como experiência coletiva, com ênfase no caso brasileiro. Na análise são privilegiados três aspectos: a estética, as temporalidades e as controvérsias. A periodização proposta considera a forma como os números são apresentados e participam na construção da pandemia, a existência de três momentos, com características distintivas entre si. A noção de emergência serve para salientar a articulação entre o momento de crise e o afloramento das formas de quantificar. Demonstra-se que a pandemia, longe de infligir uma ruptura inteiramente nova na experiência social, constitui uma articulação original entre elementos que já existiam antes de sua eclosão, envolvendo, entre outros aspectos, as tensões opondo vida e economia, a complexificação do circuito de produção de dados e a retroação dos números públicos sobre a agência social.

Linha do tempo do “tratamento precoce” para Covid-19 no Brasil: desinformação e comunicação do Ministério da Saúde

“…A ofensiva contra as medidas de distanciamento social ampliado (quarentena, lockdown ou cinturão sanitário) 50 e a defesa do uso de medicamentos para "tratamento precoce" pelo Governo Federal e suas lideranças são narrativas convergentes, pois reforçam a ideia de tensões entre as medidas de proteção à vida e a economia 51 . Principalmente, em um cenário no qual ainda não havia vacina e uma das formas encontradas para não restringir as atividades econômicas era afirmar a existência de medicamentos eficazes para a doença 52 , o Governo Federal tentava responsabilizar os governos estaduais que estavam em uma verdadeira cruzada para adoção de medidas de distanciamento social ampliado e de "paralisação da economia".…”

Avoidable Deaths in the COVID-19 Pandemic

“…During the most acute phase of the pandemic, graphs, numbers and percentages on infections and deaths were in constant circulation, serving as the basis for assessments of the situation and public policies, mainly in relation to 'lockdowns' . In 2021, with the pandemic already one year old and vaccines being rolled out, numbers gradually began to occupy a different place, referring no longer to the present and the future (as had been the case of the predictive models that were all the rage in the early months), but to the past, serving to anchor narratives about what might have happened had certain measures (not) been taken (Camargo et al 2021;Motta et al 2022).…”

“…As for the press, most outlets reported large round figures, such as 100,000 deaths. This was no coincidence, since such large numbers had the power to galvanise collective mourning and therefore public opinion (Camargo et al 2021;Motta et al 2022).…”

“…Numbers were featured throughout the enquiry committee's hearings, sparking heated debates, which were broadcast live on television and on the internet and subsequently reproduced in new programmes and on social media (Camargo et al 2021;Motta et al 2022). The testimonies given by several of the people subpoenaed as experts were designed to demonstrate how the federal government's failure to act, or some of the actions that it did take, had allowed the virus to spread more than expected, given the resources and knowledge then available, resulting in more deaths than would have been acceptable in such a situation.…”

La politique des grands nombres et les grands nombres de la politique dans la pandémie

“…4. Ce texte est une version fortement révisée et augmentée d'une analyse déjà publiée en portugais (Camargo, Motta et Mourão, 2021) ; il fait partie du projet de recherche Gouverner l'incertitude : pratiques et processus de quantification comme clé de lecture de la pandémie de covid-19, toujours en cours. © Société Française de Statistique (SFdS), Octobre/October 2022…”