Ao traduzir o projeto póstumo Mon cœur mis à nu, de Charles Baudelaire, a partir dos seus muitos inacabamentos, propus um espaço de reescrita em que três traduções possíveis operam simultaneamente, cada qual colocando em cena uma dimensão específica dos seus inacabamentos: marcas matéricas do manuscrito; inexistência de uma ordenação definitiva; rede de historicidades das edições e traduções anteriores. Neste ensaio, ocupo-me especificamente do caso da (não) ordenação de Mon cœur mis à nu, procurando mostrar como a estratégia do comentário-ensaio como tradução me permitiu estabelecer uma relação com Mon cœur mis à nu que nem recorre a soluções apressadas (ordenação randômica digital, edição em folhas avulsas etc.) nem se limita a uma inviável restituição linear e cronológica dos manuscritos. Ao percorrer o texto ensaisticamente, num tipo específico de comentário que Antoine Berman chegou a esboçar teoricamente no seu também inacabado L’âge de la traduction, produz-se uma tradução possível desse texto, desenhada a partir de linhas de força que, atravessando a leitura e a escrita ensaística, talham, estilhaçam e rearranjam o original. Para diferenciar o comentário ensaístico de tradução da nota de tradutor, também é brevemente exposto o trabalho de Ana Cristina César sobre o conto Bliss, de Katherine Mansfield.