O crescente reconhecimento do tráfico de seres humanos ao longo da última década deveu-se, em grande parte, à acção dos órgãos de comunicação social, quer enquanto veículos transmissores de informação massificados, quer enquanto participantes activos no processo de construção da realidade. Este duplo papel justifica a necessidade de estudo dos seus produtos no sentido de melhor compreender os fenómenos sociais e, particularmente, aqueles que se associam ao desvio. Da análise das notícias publicadas por dois jornais diários de distribuição nacional emerge uma sobreposição frequente entre tráfico, prostituição e imigração ilegal, fruto de um predomínio de narrativas sobre exploração sexual de mulheres, contribuindo para a presença de estereótipos e mensagens de alarme social. No entanto, os actores principais das histórias são arredados da arena das narrativas, sendo os seus discursos subalternizados face à acção dos órgãos de polícia criminal, atribuindo-lhes o controlo do conhecimento difundido sobre o fenómeno. Sublinha-se, por fim, a necessidade da adopção de códigos de conduta por parte dos agentes dos meios de comunicação de massas que permitam evitar a emissão de mensagens que apelam ao estigma e ao pânico e que promovam a reconciliação das pressões comerciais com o interesse público, a responsabilidade ética e social.
Palavras-chave:Construção social, Media, Percepções públicas, Tráfico de seres humanos.
INTRODUÇÃOReconhecidos como o 4º Estado nas sociedades modernas, os media constituem-se, na actualidade, como o veículo de transmissão de informação mais poderoso à escala global, assim como a fonte preferencial de acesso ao mundo (Berns, 2001), condicionando fortemente o conhecimento e a opinião pública. Sendo produto e reflexo das práticas socioculturais, são igualmente construtores activos da realidade (Reiner, 1997), prescrevendo grelhas de leitura e modelos de conduta, tornando-os duplamente relevantes na análise dos discursos culturais.O tráfico de seres humanos (TSH), por sua vez, tem vindo a ser, sobretudo na última década, alvo de uma atenção pública crescente e generalizada que se deveu, em larga medida, precisamente à acção dos media (Hodge & Lietz, 2007;Peixoto et al., 2005;Santos, Gomes, Duarte, & Baganha, 2008), com particular destaque para a imprensa escrita e a televisão. Dada a escassez de investigação neste domínio, pretende-se, com o presente estudo, contribuir para uma visão do TSH enquanto fenómeno socialmente construído e significado, partindo da
231Este projecto de investigação foi financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, através da Bolsa de Doutoramento SFRH/BD/40366/2007, concedida a Dulce Couto.A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Dulce Couto,