A divisão entre dádivas e mercadorias está entre os pares de oposição que mais renderam páginas de discussão na antropologia. Já há algumas décadas, contribuições sobre o tema (Gregory 2015;Strathern 2006;Graeber 2001) marcam com veemência o caráter ficcional (ou analítico) da divisão, o que implica compreender que a oposição é um artifício do antropólogo, que imagina uma linguagem conceitual de escopo provisório, mas que serve a propósitos teóricos e políticos pertinentes nos limites da trama e coerentes com os dados empíricos relevantes (Strathern 2006:33; 2014:175). Separar dádivas de mercadorias ajuda a pensar diferenças significativas entre maneiras pelas quais diferentes povos pelo mundo levam a cabo atividades ditas econômicas: produção, distribuição, troca, consumo, reprodução (sendo o destacamento dessas atividades em um campo econômico uma operação igualmente ficcional ou analítica). Strathern, parafraseando Gregory, sintetiza: "pode-se imaginar esse eixo como uma diferença entre metáforas de base: se, numa economia mercantil, as pessoas e as coisas assumem a forma social de coisas, numa economia de dádivas elas assumem a forma social de pessoas " (2006:208).A separação entre "economias de dádivas" e "economias mercantis" arrisca gerar um grande divisor, clivar o mundo entre sociedades nas quais predomina o dom e aquelas nas quais predominam a mercadoria -o que significa, afinal, dividir o mundo entre o capitalismo característico do Ocidente moderno e todas as outras formas de vida. Entretanto, enfatizar o caráter ficcional da divisão é uma forma antropológica de reflexividade: de jogar o grande divisor contra ele mesmo, utilizar categorias criadas para estudar um "lado" no "outro" e assim subverter nosso entendimento sobre o que está "dentro" e "fora" do capitalismo.1 "Dádiva" e "mercadoria", conceitos sempre provisórios, explicam um ao outro, posto que não são, a priori, predicados inerentes aos objetos descritos, nem tampouco características monolíticas de sociedades onde predominam. Um mesmo objeto é capaz de transitar em circuitos de dádiva e capitalísticos, podendo ser lido ora como dom, ora como mercadoria (Appadurai 2008;Kopytoff 2008;Tsing 2013).