O conceito de “heterodiscurso” (raznorétchie), tal como desenvolvido por Mikhail Bakhtin, constitui-se como uma poderosa e ainda pouco usada ferramenta metodológica para os historiadores, em particular para o estudo de fontes literárias. Entendendo-o, a princípio, como a incorporação do discurso alheio no romance, este texto pretende elaborar essa formulação mais profundamente. Isso será feito por meio do diálogo com outros tradicionais conceitos do arsenal bakhtiniano, tais como “dialogismo” e “polifonia”, mas não somente. Tomando como base alguns episódios da obra Dom Quixote (1605-1615), de Miguel de Cervantes, minha intenção é elaborar e demonstrar, a partir do conceito de heterodiscurso, ferramentas de análise úteis ao historiador. Em um primeiro momento, formulo a ideia de “grau de objetificação da linguagem”, buscando dar conta da complexa questão da autenticidade da representação do objeto através da linguagem. Em um segundo momento, mais importante, proponho a sistematização do heterodiscurso em progressivos níveis de distintas profundidades – o que chamei de “níveis heterodiscursivos” –, almejando abarcar as múltiplas camadas de vozes sociais presentes em um romance e melhor capturar a realidade histórica pela qual estes são circunscritos.