Provavelmente, nenhuma vida pode ser contada, porque a vida são páginas de um livro sobrepostas ou camadas de tinta que abertas ou descascadas para leitura e visão logo se desfazem em poeira, logo apodrecem: falta-lhes a invisível força que as ligava, o seu próprio peso, a sua aglutinação, a sua continuidade. A vida são também minutos que não podem desligar-se uns dos outros, e o tempo será uma massa pastosa, densa e obscura, no interior da qual nadamos dificilmente, tendo por cima de nós uma claridade indecifrada que devagar se vai apagando, como um dia que, tendo amanhecido, à noite de que saiu regressasse. Estas coisas que escrevo, se alguma vez as li antes, estarei agora imitando-as, mas não é de propósito que o faço. Se nunca as li, estou-as inventando, e se pelo contrário li, então é porque as aprendera e tenho o direito de me servir delas com se minhas fossem e inventadas agora mesmo.José Saramago (Manual de pintura e caligrafia, p. 92-93).
RESUMOO tema desta tese é a discussão sobre a singularidade da obra Minha mãe morrendo e o menino mentido de Valêncio Xavier, especialmente no modo como a relação entre o verbal e o visual oferecem uma saída singular do sujeito de um gozo mortífero com o visual que caracteriza a pós-modernidade. Para tanto, buscamos na teoria de Jacques Lacan a definição de singularidade, o que nos levou a abordar seus conceitos como o de sujeito e de gozo, bem como a noção de sinthoma, como o que há de mais singular no sujeito. Analisamos a relação do autor com uma de suas estratégias artísticas fundamentais, a montagem, entendida por nós como uma forma de sublimação, de saber-fazer-com o real do seu gozo. A montagem seria, para ele, o equivalente de um sinthoma ao enodar os três registros (Imaginário-Simbólico e Real). Buscamos, então, mostrar como o visual e o verbal na obra analisada contrapõem-se a um gozo socialmente difundido, que enfatiza os aspectos imaginários da relação do sujeito com o visual. Na obra de Valêncio, as imagens e as palavras, longe de terem entre si uma relação de complementariedade, apontam um caminho de problematização constante das potências mútuas de uma em relação à outra. Pareceu-nos necessária também uma reflexão sobre as formas de relação entre o verbal e o visual a partir das ideias de Jacques Rancière, de quem buscamos elementos teóricos para compreender o conceito de montagem e sua transformação ao longo da história, bem como as ideias de Vladimir Safatle a respeito da sublimação em Lacan. Assim, a análise da obra Minha mãe morrendo e o menino mentidoteve como fio condutor a ideia de que na relação do visual com o verbal, a montagem foi a forma que o sujeito encontrou de produzir sentido e gozo, um gozo singular. Por isso fomos, ao longo dos capítulos da tese, escandindo os temas e a estrutura formados da obra com os conceitos que nos pareceram pertinentes, conforme aludido anteriormente: singularidade, sinthoma, sublimação, e gozo. Na obra analisada, encontramos um modo complexo e singular do uso do visual, porque, aí, o sujeito não se submete a um ...