As pulgas sonham com comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico a sorte chova de repente, que chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chove ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura. Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada. Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos: Que não são, embora sejam. Que não falam idiomas, falam dialetos. Que não praticam religiões, praticam supertições. Que não fazem arte, fazem artesanato. Que não são seres humanos, são recursos humanos. Que não têm cultura, têm folclore. Que não têm cara, têm braços. Que não têm nome, têm número. Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local. Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata. RESUMO A partir do advento da modernidade, as crianças passaram a ser fonte de interesse e preocupação à nível social e político. A criação de legislação para o cuidado da infância surge, portanto, em um contexto de cultuação à norma e à média. Mais especificamente, a legislação aparece para tentar resolver o problema das crianças que se encontravam fora da norma, as crianças que estavam à margem do padrão médio, do modelo médio, a qual se denomina neste trabalho de infância marginal. Por meio do método genealógico busca-se resgatar a história desta infância no Brasil e trazer à tona a trama discursiva acerca das relações de poder e de saber, na modernidade e na contemporaneidade, que engendram ideias e práticas sobre as crianças marginais. A partir deste levantamento pôde-se perceber que as propostas de governamentalidade da infância marginal fracassam continuamente, bem como o uso de práticas violentas e segregatórias retornam o tempo todo no trato com essas crianças. Para se analisar tais achados recorre-se à teoria freudiana, especificamente a conceitos como infantil, fantasia, sexualidade, pulsão e inconsciente, como fonte para articular as questões individuais, sociais e políticas. Assim, desenvolve-se na presente pesquisa uma hipótese das intenções públicas para com a infância marginal, se estendendo às políticas e práticas atuais como as de investimento na primeira infância. Por fim, propõe-se um direcionamento para pensar uma forma possível de cuidado com a infância marginal.