Adèlaïde Herculine Barbin foi uma professora francesa que viveu durante o século 19. Aos 21 anos de idade, foi diagnosticada como intersexo e teve seu status civil retificado, passando a ser considerada um homem, agora chamado Abel Herculine Barbin. Aos 30 anos, sua história encontrou um fim repentino: Herculine cometeu suicídio. Ao lado de seu corpo, foi encontrado o manuscrito Minhas Memórias. Seus relatos narram os prazeres e as desventuras do que ela nomeia como sua dupla e estranha existência. Ao mesmo tempo, as Memórias nos mostram como a vida e a anatomia de Herculine foram investigadas e debatidas pelos médicos da época. Repetidamente, uma pergunta era endereçada a Herculine: qual seu verdadeiro sexo? Neste artigo, traçamos, junto às Memórias de Herculine Barbin, duas linhas de investigação interligadas. Na primeira delas, nos dedicamos a investigar, de forma breve, como a medicina europeia do final do século 19 se mostrou obstinada em desvendar o verdadeiro sexo dos indivíduos. Realçamos algumas discordâncias no campo das ciências quanto aos corpos “ambíguos”, demonstrando que esses saberes se viam às voltas com incertezas quando se tratava das características a serem analisadas para a atribuição do sexo de pessoas como Herculine. Na segunda linha, delineamos um caminho diferente. Trata-se de ler as Memórias a contrapelo, ou seja, de ir de encontro às potencialidades dessa narrativa para transtornar a questão do verdadeiro sexo, revolvendo-a na direção de novas conexões coletivas, afetivas e inventivas. Herculine coloca em ação uma escrita enérgica e fragmentada, na qual o sexo já quase não conta mais. Com isso, ela devolve ao sistema sexo/gênero, de maneira metamorfoseada, a interrogação sobre o seu verdadeiro sexo, abrindo a seguinte questão: nós realmente precisamos de um verdadeiro sexo? Essa pequena questão, instaurada por Herculine no seio do sistema sexo/gênero, liga-se a aspectos coletivos mais amplos, que ultrapassam a sua condição singular e o seu contexto histórico.