De acordo com a historiografia sobre o fim do escravismo, os vínculos sociais constituídos ainda no cativeiro foram essenciais para os libertos na construção da trajetória que levava da escravidão à liberdade. Tomando como foco o município de São Carlos, o artigo analisa as tensões presentes nas relações interpessoais tecidas entre negros, de um lado, e fazendeiros e pequenos proprietários rurais, do outro, durante o período pós-emancipação. Por meio da leitura de dois inquéritos policiais da época, percebeu-se que os códigos morais orientadores dessas sociabilidades eram (re) construídos, por parte dos afro-brasileiros, a partir da articulação de duas experiências vivenciadas: a migração interna de escravos, ocorrida durante as últimas décadas da escravidão, e o processo de redefinição de determinadas hierarquias sociais firmado no período pós-abolição. Esses códigos morais, por sua vez, acabavam por delimitar uma visão específica acerca das sociabilidades familiares. PALAVRAS-CHAVE: Pós-abolição. Oeste paulista. Negros. Economia cafeeira. Relações interpessoais.
INTRODUÇÃOJá há algum tempo, a aplicação do conceito de redes sociais se estabeleceu como uma temática muito cara aos estudos migratórios. Sucedendo e ampliando a noção de cadeias migratórias, as abordagens que utilizaram as redes sociais como eixo central de seus argumentos demonstraram como informações e demais recursos advindos de relações interpessoais (materiais ou estritamente simbólicos) são fundamentais em múltiplos processos migratórios. De acordo com elas, a decisão de emigrar, a escolha do destino e a inserção no mercado de trabalho da sociedade receptora, temas clássicos dentro do campo de estudos acerca das migrações, seriam concretizadas por meio da operacionalização dos recursos disponibilizados pelos laços sociais de cada sujeito ou família. De um modo geral, pode-se afirmar que, ao instituir as dinâmicas de sociabilidade como foco de análi-se, a ideia de redes sociais proporcionou uma perspectiva mais relacional para os estudos sobre o fenômeno migratório e suas diversas variáveis, o que a alçou a uma posição de destaque entre sociólogos, antropólogos e historiadores. Tornou-se comum, nesse sentido, a citação de uma frase elaborada por Charles Tilly, segundo a qual "não são os indivíduos que migram, mas sim as redes"; são elas que se transplantam e se remodelam a partir dos deslocamentos. Claro que indivíduos migram, às vezes, sozinhos, mas o fazem como participantes de um processo social que se estende para além deles próprios.