IntroduçãoO fato de Simmel ter se mantido em evidência durante a primeira metade do século XX deve-se, em grande medida, ao interesse que sua obra despertou na sociologia americana numa época em que os padrões consagrados de produção científica se opunham ao seu brilhante "ensaísmo". O seguinte comentário parece representar o tipo de acolhida que sua obra recebeu durante este período: "Simmel tem a mais refinada inteligência entre todos os seus contemporâneos. Mas, fora disso, é totalmente vazio e sem objetivos, desejando tudo exceto a verdade. Ele é um compilador de pontos de vista com os quais rodeia a verdade, sem pretender ou estar apto a possuí-la." 1 Não obstante esta aparente idiossincrasia de sua personalidade intelectual ou, como o texto sugere, apesar de sua impotência em "possuir" a verdade, a obra Simmel firmou-se como referência sociológica das mais importantes. Sua popularização deve-se, sem dúvida, ao interesse que a Escola de Chicago demonstrou por alguns de seus traços distintivos, dentre os quais eu destacaria uma certa sensibilidade cosmopolita, um enfoque predominantemente microssociológico e uma interpretação da cultura que privilegia o jogo dinâmi-co entre estruturas simbólicas identitárias e forças de alteridade. 2 Por este motivo, não parece fortuito que ensaios como "O estrangeiro", "O aventureiro" e "Conflito" sejam até hoje presenças obrigatórias nas coletâneas da obra de Simmel publicadas nos Estados Unidos, como pode atestar o Selected writings editado em 1971 por Donald Levine.Embora influente e de importância evidente, tal recepção da obra de Simmel deu-se às custas de uma apreciação mais ampla de aspectos fundamentais de seu universo temático. É curioso que um livro tão importante quanto Lebensanschauung. Vier Metaphysische Kapitel, 3 de 1918, reunindo os últimos ensaios produzidos por Simmel, ainda não tenha sido traduzido para o inglês, francês ou português -à exceção do ensaio "Caráter transcendental da vida", traduzido na década de 70 para o inglês. A importância teórica dos quatro ensaios que o compõem, todavia, pode ser estimada se tivermos em mente o meio acadê-mico no qual eles emergiram e com o qual contrastam de forma tão categórica. Pois se é bem verdade que a tradição neokantiana, com a qual Simmel * Agradeço os comentários de Silke Weber, Paulo Henrique Martins e Terry Mulhal a este ensaio.