A paz (ainda) pela jurisdição compulsória? Peace (still)
IntroduçãoHá uma tradição bastante robusta no direito internacional que, se não se inicia com Kant, com ele ganha uma força considerável: a de que o direito deve ser um instrumento para instaurar a paz no mundo e proscrever definitivamente as guerras.Na doutrina anterior a Kant, a guerra não era vista como uma antítese do próprio direito. Ao contrário, ela era legalizada. Não é à toa que o primeiro item do Livro I de Jure Belli Ac Pacis, de Grocius, já deixava claro que "a guerra é empreendida em prol da paz" e " [a] própria guerra nos levará em seguida à paz como a seu último fim" (Grotius 2004, 71) A doutrina da guerra justa não apenas permitia o uso da guerra como resposta a um ilícito, ela tornava a guerra um instrumento de suporte e efetividade do direito. É justamente em virtude do apoio, recorrente ao seu tempo, às doutrinas de autores como Grocius, mas também Puffendorf e Vattel, para "justificar uma ofensiva de guerra", que Kant chama esses "pais" do direito internacional de "tristes consoladores" (Kant 2008, 33). 1 Como se sabe, os três artigos definitivos pensados por Kant em À Paz Perpétua para se instaurar uma paz definitiva na terra exigem esforços a serem empreendidos em três dimensões jurídicas: o direito interno (Primeiro Artigo: "A Constituição civil em cada Estado deve ser republicana"), o direito internacional ("Segundo Artigo: O direito internacional deve fundar-se em um federalismo de Estados livres"), e o chamado direito cosmopolita ("Terceiro Artigo: O direito cosmopolita deve ser limitado às condições da hospitalidade universal"). O não cumprimento de qualquer um dos três dispositivos põe certamente em perigo a instauração de uma paz perpétua (Kant 2008, 24-41).* Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil (ggalindo@unb.br). 1 Essa controversa "acusação" sempre intrigou muitos especialistas. Na leitura de Koskenniemi, Kant pretendia criticar o uso do direito natural para fins meramente instrumentais. Koskenniemi 2009, 412. A pAz (AindA) pelA jurisdição compulsóriA?
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Revista BRasileiRa de Política inteRnacionalCerto, o modelo kantiano pressupõe a necessidade da ação pela paz não apenas no nível interno, pela instauração de repúblicas, mas também no nível de relacionamento entre Estados e indivíduos para além das fronteiras do Estado. Entretanto, é a projeção do direito interno que se vê no modelo que Kant propõe para que o direito internacional e o direito cosmopolita sejam loci de promoção da paz.Isso fica demonstrado nos comentários ao segundo artigo, que trata do direito internacional. Eles partem de um modelo típico de explicação do Estado moderno: a teoria do contrato social. Para Kant:Povos, como Estados, podem ser considerados como homens individuais que, em seu estado de natureza (isto é, na independência de leis exteriores), já se lesam por estarem um ao lado do outro e no qual cada um, em vista de sua segurança, pode e deve exigir do outro entrar com ele em uma constituição similar à...