C omo costuma ocorrer em países que viveram regimes políticos de cerceamento das liberdades, as primeiras descrições detalhadas sobre a Ditadura Militar brasileira vieram de uma memorialística que se tornou abundante e variada. Havia a imprensa, por certo, que em alguns momentos produziu matérias reveladoras, no arrebatamento de campanhas indignadas, como as de Carlos Heitor Cony e de Marcio Moreira Alves, 1 ou nos desvãos de textos sinuosos que buscavam contornar a censura.2 Mas as primeiras revelações mais precisas, descrevendo os subterrâneos do regime, provieram das memórias. Há a memória da esquerda, de grande impacto editorial, sobretudo a dos militantes que experimentaram os desacertos da "luta armada" e, derrotados, compuseram pungente narrativa sobre a tortura.3 Como em contraposição, a memória dos próprios militares, alguns desgostosos por terem sido afastados do poder, 4 outros tentando defender supostas positividades do regime 5 ou pretensas necessidades inexoráveis de repressão.6 Estas memórias foram enriquecidas com o passar dos anos, já que políticos, artistas, jornalistas e outros atores também têm deixado seus depoimentos, 7 por iniciativa pessoal ou estimulados, pois a proximidade do período favoreceu alguns projetos da chamada "história oral".8 Curiosamente, tal memorialística constitui-se ao mesmo tempo em fonte e objeto históricos, pois se é certo que descreve a época, também pode ser estudada como luta pelo estabelecimento da versão correta, estando por ser feita uma análise intertextual desses fragmentos como se formassem um texto único.Se quiséssemos estabelecer as fases da evolução historiográfica do conhecimento sobre a Ditadura Militar, teríamos de considerar a centralidade * As pesquisas do autor são apoiadas pelo CNPq e pela Faperj. Agradeço a Ronald Polito pela leitura preliminar e correções sugeridas.Topoi, Rio de Janeiro, dezembro 2002, pp. 251-286.