279inquenta anos de amizade e admiração por Ecléa (extensivos a Alfredo, seu marido) extravasam qualquer expressão escrita. Não sei precisar quando se deu nosso primeiro encontro -e ela, estudiosa da memória, me puxaria a orelha. É como se sempre tivesse feito parte de minha vida. Mas lembro que, amigas próximas, eu grávida de meu filho mais velho, fomos juntas visitar Carmen Junqueira, a quem eu só conhecia de vista. No cenário acolhedor do apartamento, com lareira acesa e flechas, ouvimos o mito kamaiurá da cobra e da origem dos invasores, imaginando o céu estrelado xinguano. Vejo agora Ecléa, nesse dia, como uma fada a conduzir meu destino aos povos indígenas, que ela sempre defendeu com ardor. Todos os anos, em seu curso de Psicologia Social, Ecléa promovia um debate sobre a questão indígena e falava da vida e obra dos irmãos Villas Bôas. Uma de suas muitas causas de justiça; também em cada turma dedicava aulas a Iara Iavelberg, sua colega de classe e amiga, assassinada pela ditadura na mesma época, em 1971.Ecléa era uma psicóloga de renome, professora, muito antes de eu estudar antropologia com Carmen. Um dia, ao pôr-do-sol, sentadas as duas contemplando o rio Paraíba, em uma casa de campo de meus pais, ela observou, em uma de suas tiradas inesquecíveis: "Não sei o que você vai ser, que forma irá tomar, não posso imaginar!". Embora formada em economia e professora universitária, eu bem gostaria de ter uma resposta dela naquele momento, pois não sabia que caminho iria seguir. Sua dúvida de adivinha foi um alento, abertura para uma metamorfose desconhecida.Tínhamos muitos interesses em comum. Simone Weil nos uniu. Não foi Ecléa, e sim um grande amigo, colega do curso científico no Colégio Bandeirantes, Gabriel Leite da Silva Dias, a me fazer ler L´enracinement et La condition ouvrière. Mas o mergulho intenso, a profundidade da leitura da obra da escritora por Ecléa, que resultaram anos mais tarde na antologia por ela preparada, com um ensaio introdutório esclarecedor, são impressionantes, bem mais radicais e completos do que estaria ao meu alcance realizar. Ecléa e Simone me parecem à vezes confundir-se, na exigência de um mundo sem classes e desigualdades, na febre de compreender os destituídos, viver nas mesmas condições, jamais aceitar privilégios de qualquer ordem, compartilhar sempre a arte, a literatura, a música com os que nunca tiveram acesso à esfera da criação e da liberdade. Ambas, intransigentes, não fazem concessão ao analisar o trabalho industrial, a tecnologia massacrante a que são condenados os operários, homens e mulheres. Fazem uma radiografia impiedosa do crime que é submeter seres humanos à rotina repetitiva e à linha de montagem numa fábrica, mesmo se não existisse
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