O artigo considera os motivos do sucesso de Os sertões como relato consagrado sobre a guerra de Canudos e os destinos da nação brasileira. Sua originalidade não consiste nos fatos referidos nem nas reflexões científicas e antropológicas sobre eles, mas no modo plástico, sugestivo e emocionante pelo qual os eventos são evocados e presentificados. A história é descrita mediante o uso da retórica e imagens de caráter bíblico e mitológico. O livro configura-se como encenação pictórica e teatral. A solidariedade do espectador-narrador vacila entre a inevitável civilização e a utópica comunidade de Canudos, entre a condenação e a apoteose do sertanejo insubmisso, entre a aceitação da sua morte e sua imortalização no plano simbólico, resultando numa visão trágica da história.
Este artigo, motivado pelo projeto de uma nova tradução alemã de Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, tece reflexões sobre o texto-fonte diante de reais e possíveis estratégias em versões estrangeiras. Estas são parte da fortuna crítica e ao mesmo tempo ferramenta interpretativa, pois o traduzir permite uma abordagem hermenêutica privilegiada, rastreando, desvendando e tentando reconfigurar o “modo de designar” (Benjamin) de um texto, sua “lógica do estar-produzido” (Adorno), suas “operações formadoras” (H. de Campos). Para Rosa, a poética da criação deve guiar a poética da tradução, visando ao desvio sistemático com respeito à lingua-padrão, musicalidade, composição elíptica, efeitos de choque, estranhamento, hermetismo e sugestividade. Uma microanálise comparativa de seis frases do início do romance em nove traduções permite aventar a hipótese de que nos últimos cinquenta anos vem ocorrendo certa reorientação de estratégias domesticadoras para outras mais e estrangeirizantes, mais próximas do autor e de seu próprio texto.
O autor da presente palestra relembra e contextualiza seu interesse e fascínio, a partir do final dos anos 1960, por Os Sertões de Euclides da Cunha, livro que lê, na perspectiva da dialética do Esclarecimento, como relato parcialmente ambíguo ou contraditório de um patriota que, imbuído de ideias do progresso civilizatório, pretende pesquisar e expressar a totalidade das causas, características, aspectos objetivos e subjetivos de um crime cometido em nome da nação e da civilização: a guerra de Canudos. A complexidade e enigmaticidade da tarefa leva Euclides a criar um ensaio interdisciplinar, fundindo abordagens científicas, antropológicas e poéticas numa retórica erudita, de forte impacto emocional e apelo humanitário. Tudo isto motivou o palestrante a traduzir Os Sertões ao alemão, obrigando-o a amplas pesquisas e minuciosas análises de texto, das quais são apresentados exemplos. A palestra finaliza com vozes sobre a repercussão de Krieg im Sertão nos países de língua alemã.
[Recebido em: 20 nov. 2022 – Aceito em: 15 dez. 2022]
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