O texto analisa a narrativa histórica do filme Romance do Vaqueiro Voador, de Manfredo Caldas (2007), que rememora a construção da nova capital sob a perspectiva de trabalhadores que a edificaram. Confrontamos o filme com os discursos produzidos por Juscelino Kubitschek- JK em 1960 e durante as comemorações do 1º de maio de 1959, sendo este último, registrado no cinejornal Brasília nº 16 da NOVACAP. A película, que consiste em um documentário poético, é baseada em poema-cordel homônimo, de autoria de João Bosco Bezerra Bonfim. As narrativas de JK são amplamente difundidas e estão em acervos de arquivos públicos e privados, enquanto os relatos dos operários são ainda pouco conhecidos, o que demonstra que essas vozes foram silenciadas em meio a um processo circular de estigmatização e invisibilidade social e histórica. Temos assim, em Romance do Vaqueiro Voador, um contraponto aos discursos tornados hegemônicos nas narrativas sobre o Distrito Federal.
O projeto faz parte de uma pesquisa mais ampla, que busca analisar representações construídas por e sobre mulheres durante o período da construção de Brasília. Nesta etapa foi realizado o mapeamento de fontes documentais que auxiliassem o cotejamento de dados acerca do tema. A princípio, o escopo da pesquisa consistiu em um conjunto documental diversificado: a) ocorrências policiais; b) registros de óbitos; c) carteiras de trabalho de mulheres; e d) recortes de jornais. As ocorrências policiais foram consideradas a documentação mais relevante para essa etapa de pesquisa, sendo também aquela que contém o maior volume documental: são 10 livros-¬‐ata que registram 3.971 ocorrências de crimes ocorridos entre os anos de 1957 e 1961, o que torna possível mapear as situações de violência às quais as mulheres estiveram submetidas no contexto da construção. Nesse mapeamento foram identificadas 279 situações de crimes cometidos contra mulheres, constantes em 236 registros de ocorrências, sendo em sua maioria denúncias feitas pelas próprias vítimas. Um número bem maior apresenta mulheres na condição de envolvidas, seja como denunciantes de violências cometidas contra outras pessoas, seja quando listadas como testemunhas ou nos casos em que são acusadas de algum crime. A fim de qualificar essas formas de violência, foram utilizadas as tipificações estabelecidas pela Lei Maria da Penha (91 registros de violência em âmbito doméstico) e 145 registros de violências classificados de acordo com Código Penal (crimes contra a pessoa e a vida que não denominam especificamente a esfera familiar e doméstica). Há de se ressaltar que as denúncias de violências contra mulheres -¬‐ naquele período bem como nos dias de hoje -¬‐ se caracterizam por serem crimes sub-¬‐notificados, visto que estão inscritos em uma cultura patriarcal e machista que desestimula, sobretudo, as denúncias de violências que ocorrem em âmbito doméstico e àquelas que se referem a crimes sexuais. Assim, interessou mais compreender os tipos de crimes cometidos e denunciados do que identificar um percentual representativo das violências às quais às mulheres estiveram expostas naquele momento. Entre os 91 casos de violência doméstica predominam a violência física (42) e a violência psicológica (29), seguidas da violência patrimonial (13) e violência moral (07). Não houve registros de violência sexual em espaços privados. Dentre os demais crimes identificados, 145 registros, predominam: lesão corporal (42); estupro/ tentativa de estupro (40) e assédio de tipo sexual (15), em que se destacam crianças como vítimas. A esses se somam os casos de roubos/furtos (13) e homicídio/ tentativa de homicídio (08). Em seguida, denúncias de injúria/calúnia/difamação (05), assédio moral/constrangimento ilegal (04), subtração de incapazes (06) e outros totalizam 52 ocorrências. Apesar de numericamente pouco expressivas e pela dificuldade de tipificação de acordo com a classificação adotada, as denúncias de prostituição, de tentativas de suicídio e de curandeirismo indicam elementos significativos para a compreensão das representações que envolvem mulheres naquele contexto. O panorama apresentado fornece um referencial muito significativo para o desdobramento de pesquisas, bem como, a possibilidade de pensar transformações e permanências em relação à situação histórica de violência contra mulheres no Brasil
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