O presente texto pretende desenvolver uma reflexão sobre o romance mais recente de Silviano Santiago: Machado (2016b). Já estudado por suas incursões pela ficcionalização de Graciliano Ramos depois do cárcere, no Em liberdade (1981), e da viagem de Antonin Artaud ao México, no Viagem ao México (1995), o escritor agora aventura-se na celebração do universo de Machado de Assis. A narrativa de 2016, ao perfazer uma mistura entre romance, ensaio, biografia e crítica de costumes, dedica-se a retomar os últimos anos do mais aclamado romancista da literatura brasileira, em seu ocaso de melancólica viuvez e crises nervosas. A abordagem se propõe a enlaçar a perspectiva da assinatura como identidade móvel e em constante processo de mutação com o legado da antropofagia, em que a apropriação criativa da contribuição do outro celebra um horizonte compartilhado como ponto de fuga.
Impossível pensar em Nelson Rodrigues sem situá-lo no Rio de Janeiro. De fato, poucas obras, em nossa cultura, manifestam vinculação tão visceral com a cidade, sua história, cacoetes e paixões. Penso em Lima Barreto no início do século XX e, apesar do estranhamento inicial, tento justificar a aproximação. É que, também jornalista e escritor, esse mulato pobre, em sua trágica destinação, talvez tenha criado um estilo carioca de se movimentar e conceber os espaços, em uma perspectiva comparável à de Nelson. Trata-se do ponto de vista do homem comum, do homem ordinário, como patamar de generalização dos saberes e vivências particulares daquele que escreve. Quando o trivial, o ser como todo mundo, torna-se a fonte da experiência produtora do texto.Por aí, pelo diapasão do "pobre-diabo de um terno só", de repente associo, extemporaneamente, o combativo reacioná-rio, no auge dos anos 1960, a um outro combativo, o trágico mulato triturado pela vida, e, por motivos mais dramáticos, também vítima da "burrice" das grandes unanimidades, as legiões do preconceito. Esse lugar de um narrador "sem qualidades", ao definir o leito por onde corre o discurso e o espaço de seu desenvolvimento, não constitui, em nenhum dos dois casos, o gratuito ou o fácil, mas a conquista de um distanciamento em relação ao convencional ou previsível, na fronteira entre o banal e o singular. E se, em determinados momentos, tanto Lima Barreto, em suas fúrias contra os poderosos do jornalismo, quanto Nelson Rodrigues, nas inú-meras polêmicas que travou com os mais diversos antagonistas, não conseguiram se equilibrar no instável da linha divisória, isso apenas confirma o pressuposto de uma comum profissão de fé antiintelectualista e anti-retórica.De fato, tanto na inauguração do modernismo carioca, sem alarde ou semana, pela militância de Lima Barreto contra os literatos de fraque e cartola da literatura naturalistaparnasiana quanto na inauguração do moderno teatro bra-
Uma das tendências da literatura contemporânea consiste no prolongamento de determinadas estratégias vanguardistas, no que tange à desqualificação da clausura do sentido realista e dos artifí-cios de sua estética, em nome do inapresentável, ou seja, da denún-cia dos limites convencionais do sentido e da transgressão à insuficiência da representação consagrada. Nessa linha, como o constata Richard Murphy, a centralidade do sublime pós-moderno será ocupada pela dessublimação, no combate da "creation of compensatory illusions, consolatory forms or images of harmony",* inerentes às formas orgânicas de arte e à indústria cultural, em geral.Nessa direção, a vacuidade do sentido será utilizada como um efeito desestabilizante de leitura, na medida em que, ao conjugar a promessa de um significado à impossibilidade de preenchê-la, coloca o leitor numa situação indecidível.Ao equilibrar-se na indeterminação deste intervalo, o melhor da tradição literária do fantástico moderno -de Kafka, passando pelo teatro do absurdo ou ainda pela ficção de Cortázar, para só citar alguns representantes da linha -acena para desdobramentos contemporâneos, de variada fatura. A indecidibilidade apontada nem sempre ocorre ou devido à peremptória abolição do sentido, na sinalização de um impasse, ou ainda, por conta de um certo cinismo da besteira e/ou pela alegria do superficial e do acinte.O caso posto em questão por este ensaio, a este respeito, é bem fecundo, não só pelo que faz avançar nesta hipótese, mas também pelo que interpõe de perplexidade e dúvida a tais pressupostos.A obra de Veronica Stigger, por sua moldura bizarra no desdobramento de tramas absurdas e personagens excessivos e destemperados, mas também pelo cinismo indiferente do tom, pode ser aproximada de uma moeda de dupla face: de um lado, o esgar do melodrama, do outro, a muda gargalhada da farsa. Suas curtas histórias radicalizam obsessões, fobias, manias e esquisitices até o limite do absurdo. Seu primeiro livro* é um "monstruário" de excentricidades. Moacir, insone, entre o sofrimento do câncer e o incômodo do gato verde. Janice e sua fascinação pelo próprio umbi-
A estética de almanaque concebida pela obra de Valêncio Xavier, em sua intrigante bricolage de imagens e palavras, experimenta uma espécie de clímax, na última coletânea publicada pelo autor em vida, Rremembranças da menina de rua morta nua e outros livros, de 2006. Nela a inusitada combinação entre desenhos e ilustrações recolhidos em fontes diversas, acrescida de fotografias de variada autoria, para a criação de histórias curtas e surpreendentes, causa certa perplexidade no leitor, colhido pela rede intersemiótica de correlações entre os escritos minimalistas, de feitio e fonte bastante diversificados, e o aparato visual, capaz de incluir também materiais ínfimos e cotidianos, desde recortes de jornal sensacionalistas até embalagens e pornografia.O formato alegórico do conjunto de relatos, em suas "combinações de visível e legível", na medida em que "o visível tem sua leitura", assim como "o legível tem seu teatro" (Deleuze, 1991, p. 187), convoca o leitor ao trabalho incerto da interpretação, dificultada pelo caráter risível e pelo o nonsense de determinadas passagens, urdidas entre sensacionalismo obsceno e alusividade melancólica.O exibicionismo teatral do conjunto, concebido numa espécie de lógica da charada, encena a clivagem entre o sujeito do enunciado, cínico, perverso e frequentemente pornográfico, e a posição do sujeito da enunciação, cuja negatividade irônica pretende sugerir, em seu jogo infinito, certa desconexão entre os signos e linguagens combinados e o sentido pressentido. Nessa direção, como aponta Safatle (2008, p. 31), a ironia não deixa de configurar uma forma de alegoria, no que consiste numa "dentre múltiplas maneiras de dizer algo e dar a entender outra coisa".Tudo na obra de Xavier é sinuoso e invertido, a começar por seu próprio início que, na verdade, não é o que parece. E se observarmos bem, ao contrário, o início situa-se na última pequena história da coletânea, ou, segundo a nomenclatura do autor, no seu último "livro". "Coisas da noite escura" tem como abertura uma soturna foto de um 1 Doutora em letras, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil, e pesquisadora do CNPq.
Resumo: O ensaio se propõe a interpretar o último relato de Verônica Stigger, Opisanie Swiata, a partir da sua abordagem de Raul Bopp e da antropofagia modernista. Partindo de tal objetivo, o texto procura levantar os recursos utilizados pela autora, a fim de valer-se, na composição da narrativa, do legado de diversos intelectuais e escritores do período em pauta. Nesse sentido, aponta-se, na construção da novela, além da bricolagem de pequenos textos e de ilustrações na estruturação do volume, a importância central do pastiche, segundo é apresentado por Antoine Compagnon, no livro O trabalho da citação. Entretanto, a avaliação do rendimento deste sofisticado trabalho de elaboração textual surpreende uma certa fragilidade crítica pela ornamentalidade das apropriações concatenadas sob o enfoque humorístico, com um tipo de jocosidade leve, de feitio francamente gratuito. Palavras-chave: pastiche; bricolagem; antropofagia; humor. Abstract:The essay proposes to present an interpretation of the recent fiction by Veronica Stigger, Opisanie Swiata, and aims to criticize its approach of Raul Bopp and the modernist anthropophagy. Behind the bricolage of texts and illustrations, the work strongly makes use of the
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