Ao longo do ano de 1920, de março a novembro, Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz trocaram inúmeras correspondências cujo foco principal era sua relação amorosa. Paralelamente à aparente ordinariedade de uma troca afetiva intensa via cartas, discussões literárias e antropológicas ganham força tendo em vista a construção de um diálogo interativo no qual cada carta é causa e consequência da seguinte, sendo, assim, ao mesmo tempo, unidade em si mesma e unidade em uma relacionalidade dual-virtual de espera da resposta, da carta a chegar.De acordo com Manuela Parreira da Silva (2012), o namoro teve duas fases: uma em 1920, e outra, em 1929, na qual, também epistolarmente, observa-se um novo vislumbre de possibilidade de relação. Na primeira fase, destaca-se, ainda segundo Parreira da Silva, de um lado, uma serenidade afetiva de Pessoa, e, de outro, em contraste, uma transbordante efusão sentimental de Ofélia, compondo-se uma relação sempre ingerida pela presença -desagradável, para Ofélia -de Álvaro de Campos e de A.A. Crosse, heterônimos de Pessoa. Entre o ideal burguês de um casamento e de uma domesticidade almejados por Ofélia e a paixão literária da vivência plural do mundo buscada por Pessoa, desenha-se uma relação amorosa cujos limites e pontos nodais podem ser emblemáticos para interpretações antropológicas da realidade romântica do início do século XX.Paralelamente, a categoria amor, entendida como uma prefi guração ontológica motivacional das cartas, precipita-se na realização das mesmas: a interpretação defendida, dentro do panorama de uma antropologia das emoções, é a de que não se trata de cartas de amor, mas de cartas que são o amor, nas quais o ato de escrever não é a mera expressão do sentimento, mas a realização plena do mesmo. A partir da concepção contextualista de Catherine Lutz (1986;1990), se as emoções devem ser alocadas em contextos interativos nos quais os padrões de ação e sociais informam e formam-nas, e a partir dos