I. INTRODUÇÃOUm problema atravessa as abordagens feministas, ainda que elas confrontem-no de maneiras distintas: a existência de direitos formalmente iguais não é suficiente para situar os indivíduos igualmente no que diz respeito às possibilidades efetivas de autodeterminação 1 . As relações de poder, que incluem variações da tolerância social à subordinação, são expressas em formas legitimadas de autoridade, em expectativas sociais relativas ao papel que mulheres e homens desempenhariam nas diferentes esferas e, sobretudo, no modo como as posições sociais estão associadas a recursos simbólicos e materiais -e como definem o acesso a eles.Considerado esse solo comum, o debate sobre autonomia e preferências no feminismo é fecundo justamente em suas ambiguidades. Elas expõem as tensões entre a valorização da capacidade dos indivíduos de expressar autonomamente suas preferências, e a crítica, necessária, ao fato de que as preferências são desdobramentos das relações de poder. Por isso, ao discutir a formação das preferências e as possibilidades de escolhas autônomas, o debate feminista remete sistematicamente à posição social dos indivíduos e não a processos e cálculos mentais individuais que se dariam em uma esfera à parteinterna ou mais autêntica.Em uma breve definição, pode-se dizer que contexto e processo são o objeto nas análises assim orientadas. De modo preliminar, defino o contexto como o conjunto das regras legais, das pressões sociais, das informações e recursos materiais disponíveis, dos valores mobilizados no cotidiano da "cultura" (SUNSTEIN, 2009), dos hábitos 1 As discussões apresentadas neste artigo integram as pesquisas "Desigualdades e preferências: a tensão entre o valor da autonomia individual e a crítica à opressão na teoria política contemporânea", financiada pelo CNPq, e "Justiça, democracia e desigualdades: entrelaçamentos teóricos, implicações práticas" (CNPq, edital n. 7/2011). Uma versão anterior e reduzida deste texto foi apresentada no IV Simpósio de Teoria Política do IFCS-UFRJ, realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em setembro de 2012. Foi, tambem, discutida no Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades, o Demodê, da Universidade e Brasília (UnB). Agradeço às/aos colegas que participaram do Simpósio, aos integrantes do Demodê, e às/aos pareceristas anônimos da Revista de Sociologia e Política pelas contribuições. Agradeço, em especial, a Luis Felipe Miguel pelos comentários feitos a versões anteriores do texto.