A tradução literária e sua serventia mbora nestes tempos mercantilistas (que tempos não foram?) com frequência só se considere útil aquilo que dá dinheiro, é difícil justificar a afirmação comum, às vezes feita como censura, às vezes como manifestação de profundo orgulho, de que a literatura não serve para nada. A literatura tem -e já teve seguramente mais, se não considerarmos "literatura" os grandes relatos audiovisuais -uma grande influência 1 na criação de imaginários decisivos para conformar nossa visão do mundo. A estética verbal contribuiu poderosamente para criar e destruir, afiançar ou pôr em questão as nossas múltiplas identidades. Teve e tem um papel importante na conformação das nossas pátrias; trabalhou a favor e contra a opressão, o colonialismo ou a escravidão; legitimou as piores iniquidades e por vezes foi a primeira em denunciá-las.Por isso os literatos foram (e são) perseguidos ou elevados, condenados ou exaltados segundo o grau em que os imaginários criados apoiavam ou atacavam os interesses daqueles que em cada momento têm o poder de perseguir ou de exaltar. E não só viram os seus textos proibidos, ou as suas próprias pessoas privadas de liberdade e com frequência até da vida. Também sofreram as consequências do seu próprio remédio, quer dizer, tiveram de enfrentar discursos que os desacreditavam, que tornavam aquilo que eles tinham escrito desconfiável e suspeito, ou "mau", e portanto sem lugar no cânone dos conformadores de mentalidade. Quem é que, na cultura ocidental, não imagina a Idade Média como um quadro de Walter Scott? Em que medida Umberto Eco com o seu O Nome da Rosa ou Ken Follet com Os Pilares da Terra, por citar dois autores largamente lidos, matizaram ou alteraram essa representação? É comparável a influência dessas fontes no nosso imaginário medieval com a que tiveram os artigos especializados publicados em prestigiosas revistas científicas por eruditos medievalistas? Acho que não.Ora bem, a maior parte das pessoas não leram Eco ou Follet. Leram as suas traduções. Só pelas traduções existe de fato a possibilidade de conceber uma literatura universal (embora continue a ser, apesar de tudo, quase exclusi-