Novas perspectivas sobre os sonhos ameríndios: uma apresentaçãoQuem envereda pelo tema dos sonhos depara-se com uma imensa literatura, tão antiga quanto a escrita, tão heterogênea quanto são as formas de conhecer. Se até mesmo os rouxinóis sonham sonhos de rouxinóis, como nota Buffon em sua História Natural, a tarefa de atribuir sentido ao fenômeno ultrapassa as fronteiras das áreas do saber: os sonhos são reivindicados pelas artes e pela literatura como fonte de inspiração criativa; pelas religiões, como meio de comunicação direta com o divino; pela psicanálise, como a "via real" para o inconsciente; pelas ciências médicas e biológicas, como fenômenos fisiológicos, neurológicos, característicos da fase REM (rapid eye movement) do sono; por diversos povos, que os assumem como um meio de aquisição de conhecimentos sobre si, sobre outrem e sobre o mundo.Entre os povos ameríndios, em geral, e das terras baixas da América do Sul, em particular, a importância dos sonhos é observada desde longa data, como já assinalam os relatos dos primeiros viajantes europeus. Abundam nas crônicas e etnografias dessa região referências ao papel central que os sonhos e seus relatos possuem no cotidiano destes povos. Entretanto, apesar de ser um tema recorrente, a experiência onírica destes coletivos assumiu, de modo geral, um papel menor nas etnografias, o que talvez diga mais sobre os seus etnógrafos do que sobre os próprios coletivos. Não raro, o tema vê-se reduzido a trechos de capítulos ou a breves considerações etnográficas ou anedóticas nos trabalhos que se dedicam a abordá-lo. Tudo se passa, a despeito das inúmeras revisões da literatura antropológica, como se fosse mantida a grande divisão, estabelecida por Durkheim, entre representações individuais e representações coletivas, as primeiras -os sonhos, por exemplo -sendo reservadas ao campo de estudo da Psicologia.