A Autora E Os Bichos: A Vida Íntima De Ulisses

Abstract

O objetivo deste estudo teórico é problematizar a presença do cachorro Ulisses como alter ego de Clarice Lispector no livro infantil Quase de verdade (1978). Ulisses era também o cachorro da autora, mencionado por ela em diversas entrevistas e no livro Um sopro de vida (1999) em termos de sua humanidade, que o habilitaria a compreender Clarice de um modo particular e mais próximo, quase cúmplice. Essa humanidade se concretiza quando ele assume a narração em Quase de verdade, posicionando Clarice como sua intérprete. A relação com o bicho revela-se de modo simbiótico, recuperando tanto uma experiência mais instintiva da autora como permitindo a fruição das emoções presentes no animal, em um processo de complementaridade. Como vértices de um mesmo eu, discute-se em que medida Ulisses também funciona como um intérprete de Clarice, propondo a ela uma experiência concreta de viver que ultrapassaria a construção de uma inteligibilidade racional. A dimensão do viver, sensorial e corpóreo, desse modo, apresenta-se como superior à atividade compreensiva, aproximando Clarice do universo íntimo, básico e igualmente selvagem tão bem vivido e corporificado por Ulisses, capitaneado à posição de um alter ego puro capaz de ensiná-la a viver com a sua própria animalidade.

Porosidades claricianas: intertextualidade e interdiscurso no filme “O livro dos prazeres”

“…A seguir, exploraremos de modo mais detido a presença dos animais na adaptação do livro para o cinema, refletindo sobre os movimentos intertextuais e Entretextos, Londrina, v. 23, n. 4, p. 45 -67, 2023 Porosidades claricianas: intertextualidade e interdiscurso no filme "O livro dos prazeres" interdiscursivos disparados a partir dessas figuras. Como referido em diversos estudos (Santiago, 2019;Scorsolini-Comin, 2023), o universo selvagem, em Clarice, ocupa um espaço de destaque, marcado, sobretudo, pela icônica presença da barata no romance "A paixão segundo G. H." (Lispector, 2009) e de diversas espécies ao longo de seus romances e de seus livros voltados ao público infantil (Lispector, 2010), apenas para citar alguns exemplos.…”

“…Em sua biografia, por exemplo, ganha destaque o modo como fora acompanhada de perto pelo regime militar por ser de uma família de imigrantes, judia e intelectual. Em sua obra, temas considerados mais políticos emergem, apenas para citar alguns exemplos, no conto "Mineirinho", no livro infantil "Quase de verdade" e, sobretudo, com a sua última protagonista em "A hora da estrela" (Scorsolini-Comin;.…”

“…Assim, pontuamos que a autora não se enquadra em uma categoria fixa ou como representante de um dado movimento, mas mostra-se porosa a diferentes interpretações e diálogos, seguindo uma tendência das literaturas pós-modernas. Dessa monta, não é posicionada, por exemplo, como a representante de um dado momento ou tema, de modo circunscrito, mas como uma autora perenemente revisitada, quer seja pela crítica Entretextos, Londrina, v. 23, n. 4, p. 45 -67, 2023 Porosidades claricianas: intertextualidade e interdiscurso no filme "O livro dos prazeres" literária, pelas ciências da linguagem, pela Filosofia, pela Psicologia, em um movimento polissêmico e sempre em aberto (Gotlib, 2009;Manzo, 2001;Montero, 2021;Scorsolini-Comin;Rodrigues;.…”

“…Tomando como referência o conceito de intertextualidade na análise do discurso pecheutiana, a AD, e, considerando que não se trata de um conceito construído nesse referencial teórico, é importante retomarmos a existência da intertextualidade externa (interação de uma formação discursiva com outras) e da intertextualidade interna, ou seja, de uma formação discursiva dentro dela mesma (Fischer, 1995;Scorsolini-Comin;Rodrigues;. Ao invés de priorizar a intertextualidade, que é a relação entre textos, a AD propõe ao analista o conceito de interdiscurso, mais amplo, que pertence à ordem da memória discursiva (Lampoglia;Romão, 2010).…”

“…Isso significa que identificar e reconhecer as pistas de um dizer em outro dizer não se resume em uma tarefa meramente classificatória, mas nos coloca diante da necessidade de compreender os tensionamentos existentes entre esses dizeres, entre essas formações discursivas. (Scorsolini-Comin;Rodrigues;Pacífico, 2022, p. 487).…”