Para que serve a antropologia (em tempos de Covid-19)?A história da antropologia feita no Brasil tem sido caracterizada por um compromisso político e social com as populações e coletivos com os quais antropólogas e antropólogos têm se relacionado. Esse compromisso atravessa e constitui relações de compreensão sobre o mundo, participação em lutas e disputas, a tentativa de entender a distribuição diferencial do sofrimento e dos privilégios que organizam as possibilidades de enunciação e seus efeitos no tecido social. Não tão pacificada, esse aspecto fundador do modo como desenvolvemos nosso ofício vez ou outra retorna a partir de problematizações em torno de uma antropologia aplicada versus uma antropologia engajada, ou mesmo dos limites entre fazer etnográfico e militância. Em suma, parte-se de uma possibilidade de separação (quiçá radical) entre política e epistemologia, ou entre modos de conhecer e a extensão social dos modos de conhecer que em última instância, tem se revelado cada vez mais emaranhada e entranhada.De uma maneira distinta das tradições de conhecimento que colonizaram nossa disciplina, a exemplo daquelas de origem estadunidense e francesa, a antropologia feita no Brasil tem se caracterizado, em grande medida, pelo modo como a diferença opera aproximações e distanciamentos, conforme argumenta Mariza Peirano (1999). Na perspectiva da autora, é possível destacar quatro categorias de relação -"alteridade radical", "contato com a alteridade", "alteridade próxima" e "alteridade mínima" -que permitiram a conformação de um conhecimento em que a experiência e o instrumental etnográfico partem das experiências espacialmente localizadas nos limites do território nacional e relacionalmente pela partilha de certos atributos. A produção das relações em campo e nosso engajamento como pesquisadoras ou pesquisadores partem assim de uma relação de partilha do tempo e espaço, que instauram a coetaneidade (FABIAN, 1983), ou seja, o reconhecimento de que dividir um mesmo tempo e espaço é condição fundamental de nossos projetos de conhecimento.A proximidade colocada por nossa relação com os interlocutores e interlocutoras de pesquisa, no contexto de uma disciplina ainda marcada por traços elitistas e que busca com dificuldade desatar-se dos nós do colonialismo retoma algumas questões centrais: quem faz a antropologia? Para que ela serve? Como a sociedade pode valer-se do conhecimento antropológico? Se considerarmos o ambiente político estabelecido nas últimas duas décadas, as questões ganham ainda mais relevância. Como pensar o contraste entre expansão do ensino superior, da pós-graduação e da ciência e tecnologia com o movimento de deslegitimação do fazer científico e do conhecimento produzido por especialistas, assim EDITORIAL | 2