Os anos de 2020 e 2021 foram marcados por importantes transformações globaisem decorrência da pandemia da COVID-19. No campo da saúde mental temos observadoum importante incremento de pesquisas e também de intervenções que se voltam àcompreensão das repercussões da pandemia, em um movimento que revela a fragilidadeda nossa condição humana e, para além disso, a necessidade de que reconheçamos essecircunscritor em busca de novas formas de existir e de cuidar não apenas de nós e dosoutros, mas de um mundo em transição.O trânsito da pandemia e as suas sucessivas ondas em todas as partes do mundorevelam a instabilidade desse momento histórico. Assim, o anunciado fim do biênio 2020-2021 não pode sercorporificado, precisamente, como o fim de uma tormenta, mas como um período no qual tivemos, globalmente,que lidar com as importantes intempéries produzidas pela pandemia em praticamente todos os níveis de nossasrelações.Embora tenhamos sempre a capacidade renovada de avistar um futuro com mais esperança após atormenta, é importante que não nos esqueçamos do que vivemos – não apenas pela possibilidade de que essasvivências sejam reavivadas no futuro, mas também porque o esquecimento pode nos custar muito. Inclusiveem termos de saúde mental. É nesse sentido que a SMAD reforça a cada ano o compromisso com a divulgaçãode pesquisas, intervenções e reflexões no campo da saúde mental engajadas não apenas na mudança, masancorando-se na necessidade de lembrar de nosso passado, podendo construir um porvir reflexivo e, sobretudo,mais humano nesse campo da assistência.O primeiro fascículo do ano de 2022 da SMAD é aberto com um editorial bastante oportuno sobre acomunicação da Ciência e o seu papel em uma sociedade dominada pela informação, escrito pela Profa. Dra.Carolina Aires, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. O textopõe em destaque a importância que pesquisadoras e pesquisadores possuem no combate às fake news e para a construção de redes de informação que façam frente à disseminação vertiginosa de conteúdo inadequado e que colocaem risco a saúde da população(1). No campo da saúde mental, as fake news podem contribuir para o reforçamentode estigmas, para a proliferação de informações equivocadas sobre tratamentos e, com isso, expor grande parceladas pessoas a tratamentos ineficazes ou, ainda, subvalorizando expressões do adoecimento psíquico no cotidiano.O primeiro artigo que compõe este fascículo é intitulado “Desinstitucionalização e as novas possibilidades nocotidiano dos familiares de egressos(as) de um hospital psiquiátrico”, da autoria de Ingredy Nayara Chiaccio Silva eCarina Pimentel Souza Batista, da Universidade Federal da Bahia. A partir de entrevistas com familiares de egressos deum hospital psiquiátrico são destacadas repercussões como medo e apreensão pelo processo de desinstitucionalização.A pesquisa enfatiza a importância do trabalho da equipe de desinstitucionalização no processo de reconstrução devínculos afetivos com esses familiares, ressaltando que este ainda é um dos maiores desafios de uma assistênciaalinhada às rupturas promovidas pela Reforma Psiquiátrica.O segundo artigo é intitulado “Conhecimento de vereadores acerca do uso do álcool e repercussões sobre a saúdedos usuários”, da autoria de Tancredo Castelo Branco Neto e demais pesquisadores, em uma colaboração entre aUniversidade Federal do Amapá, a Universidade Federal do Piauí e o Centro Universitário UNINOVAFAPI. Os vereadoresentrevistados, em sua maioria, desaprovam o uso de álcool pela população, recorrendo a ideias alicerçadas no sensocomum para tratar dos possíveis agravos à saúde decorrentes do uso e do abuso de álcool. O estudo aponta para anecessidade de maior conscientização desses legisladores acerca das questões de saúde pública, notadamente datutela jurídica dos usuários de álcool.Na sequência, Jorge Luiz Lima da Silva e colaboradores ligados à Universidade Federal Fluminense apresentam oestudo “Transtornos mentais comuns e síndrome de burnout entre profissionais de colégio universitário”. A investigaçãofoi realizada com 106 trabalhadores da educação, revelando que a suspeição de transtorno mental comum nessa amostrafoi de 22,6%, com associações entre as dimensões de despersonalização e de exaustão emocional características doburnout. Endereçamentos em relação à prevenção de agravos à saúde nesse contexto são apresentados pelos autores.Pesquisadoras e pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos e da Universidade Federal do Piauíapresentam, na sequência do fascículo, o estudo “Classificação do risco de consumo de álcool de gestantes nos últimos12 meses e durante a gravidez”. A pesquisa foi realizada com 118 gestantes usuárias do SUS de dois municípios.Os resultados destacam que 94,9% dessas gestantes faziam uso frequentemente do álcool antes da gravidez, comassociações entre o consumo pregresso de álcool das mulheres e o consumo durante o período gravídico. Tais dadossão discutidos no artigo com vistas a possibilitar reflexões sobre as estratégias de prevenção e de promoção de saúdemental junto a essa população, identificando vulnerabilidades que devem ser acolhidas pelos equipamentos de saúde.Na sequência é apresentado o estudo “Potencialidades e desafios do trabalho multiprofissional nos Centros deAtenção Psicossocial”, de Giovana Telles Jafelice, Daniel Augusto da Silva e João Fernando Marcolan, da UniversidadeFederal de São Paulo. A pesquisa entrevistou 27 trabalhadores de nove Centros de Atenção Psicossocial Adultovinculados à Prefeitura Municipal de São Paulo. Entre as potencialidades dessa atuação foi destacada, dentre outros,a possibilidade de um trabalho integrado e em rede. A precarização do trabalho e o sofrimento do trabalhador forammencionados como limitações. Essas limitações são narradas pelos trabalhadores em referência ao que chamam delógica ambulatorial, revelando fragilidades na efetivação dos pressupostos da Reforma Psiquiátrica.Pesquisadores do Centro Universitário UNIFACISA e da Universidade Estadual da Paraíba apresentam, na sequência,o artigo intitulado “Ansiedade traço-estado em estudantes universitários do curso de enfermagem”. Como observadona literatura científica que investiga a saúde mental em estudantes do ensino superior(2), os autores encontraram naamostra um alto nível de ansiedade. Essa ansiedade está associada, no estudo em tela, a situações acadêmicas e aconsequências dessa rotina, o que deve ser discutido também a partir de políticas educacionais dispostas a compreendero papel desse contexto nessa sintomatologia.O estudo metodológico “Desenvolvimento de um instrumento de avaliação do letramento em saúde relacionadaao hábito etilista”, de Ana Monique Gomes Brito e colaboradores das Faculdades Unidas do Norte de Minas e daUniversidade Estadual de Montes Claros, investigou as propriedades do instrumento para avaliação do Letramentoem Saúde quanto ao Hábito Etilista (LSHE). A partir das propriedades psicométricas apresentadas e discutidas noartigo, o LSHE foi considerado válido, confiável e com boa interpretabilidade, podendo dar origem a outros estudosmetodológicos para a compreensão mais pormenorizada dessas propriedades.Em seguida, Aline Bedin Zanatta, Laura Lamas Martins Gonçalves e Sergio Roberto de Lucca, da UniversidadeEstadual de Campinas, apresentam o artigo “O processo de trabalho nos Centros de Atenção Psicossocial na perspectivados gestores”. Foram entrevistadas gestoras de 11 Centros de Atenção Psicossocial de um município de grande porteno interior de São Paulo. As gestoras destacam a satisfação com o trabalho em termos da possibilidade de uma atenção próxima e com vínculos em saúde mental. Apesar disso, revelam também situações de desgaste em relaçãoà natureza do trabalho e seus processos administrativos. Os autores recomendam o fortalecimento da rede como umimportante promotor de cuidado entre a equipe multiprofissional.O estudo “A automedicação com psicotrópicos entre estudantes universitários: uma revisão integrativa” éapresentado por pesquisadores da Universidade Franciscana, de Santa Maria, estado do Rio Grande do Sul. Arevisão contemplou publicações entre os anos de 2009 e 2019, corroborando com a vulnerabilidade dos estudantesuniversitários quanto aos riscos para a automedicação, principalmente quanto ao uso de estimulantes e analgésicos.As motivações para a automedicação envolvem fatores de rendimento acadêmico. Os autores enfatizam a premênciade “sensibilizar autoridades quanto à legitimação e implementação de políticas públicas de combate à automedicaçãoentre universitários”.O fascículo encerra-se com o artigo intitulado “A fotografia em saúde mental: um olhar para o subjetivo”, deLahanna da Silva Ribeiro e colaboradoras ligadas à Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. Arevisão integrativa buscou identificar na literatura científica ações em saúde mental realizadas a partir da fotografia.Os estudos recuperados revelam ações como oficinas, pesquisas com fotovoz e foto-elicitação, além de mostrasfotográficas. As autoras concluíram que a fotografia pode ser um “dispositivo de promoção da saúde mental aopermitir que os indivíduos compartilhem suas experiências e seus sentimentos, os quais, comumente, ocultam-seem metodologias convencionais”.Finalizamos esta apresentação com o desejo de que esses estudos do primeiro fascículo de 2022 possam serapreciados como convites a dois movimentos importantes. O primeiro deles refere-se à necessidade de pesquisar eintervir junto aos profissionais que atuam em equipamentos de saúde mental, a exemplo do interesse manifestadoem relação aos profissionais de saúde da chamada “linha de frente” no combate à COVID-19(3) e também junto aestudantes universitários(2). As demandas desses grupos vêm se revelando na literatura científica não apenas comoexpressivas e urgentes, mas também permitindo reflexões em relação à universidade que estamos construindo aolongo dos últimos anos e às reais mudanças a partir da Reforma Psiquiátrica no que se refere especificamente a essesprofissionais de diferentes categorias nos diversos equipamentos de cuidado em saúde mental.Ainda nesse primeiro movimento, a esses dois públicos priorizados no campo da saúde mental, como ilustradoneste presente fascículo que abre o ano de 2022, podemos incluir os professores(4) – da educação infantil a superior -,sobretudo considerando as transições entre ensino presencial, remoto e híbrido oportunizadas no itinerário pandêmico.Obviamente que as vulnerabilidades em saúde mental continuam a mobilizar esforços de pesquisa e de intervenção,o que deve ser endereçado, de modo mais evidente, nos estudos a partir da maior tormenta vivenciada justamentenos anos de 2020 e 2021.Considerar essas vulnerabilidades também envolve o cotejamento das diversidades, do aumento da pobreza e daextrema pobreza no cenário brasileiro, por exemplo, além das assimetrias sociais, econômicas, políticas e culturais quenão nos permitem afirmar que enfrentamos a mesma tormenta(5). É mister, portanto, priorizar o cuidado a populaçõesem permanente vulnerabilidade, em uma tormenta que não se extingue com o anúncio do fim de um período. Olharpara esse processo a partir de perspectivas branco-americano-eurocentradas e pouco porosas à alteridade continuaráreavivando a tormenta que buscamos ultrapassar.O segundo movimento legitimado por essas produções envolve a necessidade de que as realidades aqui retratadas,notadamente produzidas antes do contexto da pandemia da COVID-19, possam ser acompanhadas em termos demudanças, necessidades e limitações impostas por esse contexto global. O ano de 2022 avizinha-se como um marcadorimportante depois de dois anos de intensas transformações. Não se trata, necessariamente, de pensarmos este anocomo um contexto pós-pandêmico, mas justamente de um ano em que diferentes convites podem ser endereçados:à permanência dos desafios impostos no biênio 2020-2021 e à construção de novas estratégias para a retomada doque um dia fomos e, mais provavelmente, para a criação daquilo que precisamos ser depois dessa tormenta. E, porfim, em um cenário de impermanência, continua patente o questionamento: atravessamos a tormenta?