Este trabalho tem como objetivo deslindar consensos e firmar interpretações para o "fazer-se" da cidade de São Paulo a partir da consideração das múltiplas dinâmicas, relações, estratégias, confluências e disputas que foram articuladas pela ampla gama de agentes envolvidos nesse imbricado processo. Não à toa escolhemos a Avenida Angélica, das décadas de 1890 a 1920, como objeto. Sobre ela incide na historiografia uma imagem monolítica, que reitera a explicação da modernização de São Paulo como a vitória plena e triunfante de um projeto consensual das elites. Sendo assim, trata-se de um palco privilegiado para observarmos as tensões, fissuras e incongruências ocultadas por essa homogeneidade construída e darmos passos em direção a outros caminhos explicativos possíveis. Para tanto, nos valemos de vasto corpus documental que nos permitiu penetrar em diversos âmbitos e dimensões do processo de consolidação e vivência da Avenida. Através das atas camarárias, pedidos de obras, jornais e cartografias, adentramos em seu espaço-tempo a partir de quatro perspectivas: as agitações de seu mercado de terras e imóveis, os conflitos no estabelecimento de regulamentações construtivas, as ambivalentes experiências e expectativas diante de seu "progresso" e as múltiplas relações sociais, materiais e econômicas envolvidas no chão de sua vida cotidiana. Por meio dessas, descobrimos que ali, lado a lado com os anseios exibitivos e segregativos das elites e do Estado, habitavam as ruas, batalhavam por suas estratégias e direitos, desenvolviam suas vidas e erguiam suas residências os mais diversos membros dos setores médios e trabalhadores da cidade. Percebemos que os grupos e classes tampouco eram estanques, mas homogêneos e heterogêneos, fraternos e competitivos, de uma só vez. Isso porque os interesses públicos e privados de seus membros, fossem das elites ou dos menos apossados, variavam de acordo com as circunstancias. Essas oscilações nos anseios e nas conjunturas tornavam o "fazer-se" da Avenida um dinâmico mosaico de fronteiras. Limiares multidimensionais, que eram entrecruzados pelos universos das relações sociais, materiais e simbólicas. Longe de configurarem "muros", as fronteiras eram cambiantes e de consistência variada. Quando porosas, configuravam espaços de associação e negociação entre os agentes. Quando cerradas, tornavam-se limiares de rijos conflitos, disputas e tensões. Em suas bordas, encontros e desencontros conformaram um "fazer-se" irrequieto, plural e movediço. Longe de ser plena, a Angélica era uma encruzilhada, onde encontravam-se os desejos, táticas e práticas da ampla e variada gama de seus habitantes, configurando uma modernização ambivalente, plural, imbricada. Ao invés de unívoca e retilínea, era uma Avenida de mil vias tensas e entremeadas.