Lições sobre o contentamento nas narrativas históricas medievais

Abstract

Susani Silveira Lemos FrançaNuma de suas mais celebradas obras, Cartas a Lucílio, inclui Sêneca entre as várias reflexões que propunha como auxiliares na definição dos valores da existência, considerações sobre o que era ser feliz.1 Desdobrando a máxima de que "o sábio basta-se a si mesmo", o filósofo explica a seu destinatário que ela não se aplica, como muitos entendem erroneamente, ao viver, mas ao "viver feliz", única forma de vida que depende da relação do sábio consigo próprio. Viver implicaria carência de muitas coisas, mas viver feliz demandava apenas "possuir um espírito são, elevado e indiferente à fortuna". E prosseguindo no seu exercício de esclarecimento e, conseqüen-temente, de persuasão, o filósofo opõe o sábio, que precisa de muitas coisas para viver, mas não carece, não tem necessidade de nada para viver feliz, ao insensato, aquele que, segundo Crisipo, não precisa de nada, "porque não sabe o uso correto de nada", mas "carece de tudo". Exemplo lembrado dessa virtuosa concentração em si era o de Estilbão, que continuou feliz mesmo tendo visto perecer os seus e a sua cidade, pois julgava não ter perdido os bens verdadeiros: a justiça, a virtude, a prudência e o "simples fato de não considerar como bem algo que se possa perder".Para corroborar esse seu pensamento, Sêneca apela para uma frase de Epicuro que diz que "quem considera diminutos os seus bens, mesmo quando é senhor de todo o mundo, esse homem é um indigente", ou seja, aquele que nunca se julga feliz, mesmo que seja imperador do mundo, é sempre, diferentemente do sábio, um indigente, porque, por insensatez, não consegue contentar-se consigo mesmo. Só ao sábio é dado contentar-se com o que tem. Aqueles que tomaram Sêneca como autoridade 3 , os medievais, não foram menos essencialistas e prescritivos que o "filósofo da condição humana". Também eles quiseram, ainda que com motivações e objetivos muito diferentes -como bons cristãos que eram, o que os conduzia era o temor de contrariar a vontade divina e o desejo de atendê-la -, definir para os do seu tempo e dos tempos vindouros os caminhos para encontrar a paz de espíri-to, e o fizeram inclusive no plano da escrita do passado, isto é, nas crônicas. Nesse plano, ou melhor, nesse gênero, que foi no final da Idade Média o gênero por excelência de estabelecimento do passado a ser preservado, são notáveis as incursões rumo à definição de valores, se não da existência em geral, ao menos da existência dos nobres.Na produção historiográfica portuguesa do século XV, século em que a história não só passa a ser produzida em língua nacional 4 , mas sobretudo passa a ser vista como um instrumento de consolidação de uma certa imagem dos governantes e da governação, são inúmeras as incursões dos cronistas por considerações de caráter ético. E nas crônicas, à semelhança do que ocorria em Sêneca -que, ao mesmo tempo que visava definir valores para a existência, acabava ajudando a explicar o que se entendia como natureza humana -, o resultado é duplo, pois, ao preceituarem formas de conduta para os dirigen...