Introdução: as acusações de feitiçaria e os casos a serem trabalhados 1 O estudo de Evans-Pritchard (1978) sobre bruxaria entre os Azande apresentou a crença na bruxaria como parte central de um sistema de valores organizado, coerente e com capacidade de regular a conduta humana. Compreendendo a crença na bruxaria como um sistema de ideias, o autor refuta as concepções de que a bruxaria seria uma "crença repugnante" (:57), como também critica parte da própria tradição antropológica inglesa que entendia certos tipos de "crença" na magia como "sobrevivências" (Tylor 1970:62), quando encontrada entre "civilizações", ou como marca de estágios evolutivos pregressos, quando observada a partir de povos não europeus. As acusações de feitiçaria, em particular, são um tema capaz de iluminar as relações sociais em suas tensões, hierarquias e movimentos que envolvem rupturas, estabelecimento de novos laços e/ou delimitação de pertencimentos e lealdades. Para autores como Mitchell (1956), Marwick (1952), Middleton (1960) e Turner (1954), as acusações de feitiçaria são práticas que promovem rupturas nas relações sociais (Douglas 1970:xxi).2 Assim, as acusações de feitiçaria teriam um caráter eminentemente conflitivo.Na tradição antropológica relacionada aos estudos do interacionismo simbólico e, mais especificamente, aos estudos sobre "desvio", há um importante conjunto de trabalhos sobre o tema das acusações que ultrapassam aqueles relacionados à feitiçaria, como atestam os trabalhos de Goffman (1975) e Becker (2008. Para estes autores, o "estigma" e o "desvio" são parte de etiquetas sociais que moldam o curso da interação social. Essas vertentes do pensamento científico influenciaram a produção do antropólogo Gilberto Velho a respeito de uma "teoria das acusações", ainda que as contribuições de Evans-Pritchard e Mary Douglas se façam também bastante notáveis nas análises do autor (Velho 2004a).