Resumo: O choque do Velho Mundo frente à belicosidade do Novo Mundo pode ser pensado com o auxílio de textos etnográficos e filosóficos que nos permitem questionar se o homem ocidental e o ameríndio entendiam e praticavam a guerra da mesma forma. Desde a perspectiva essencialista de Pierre Clastres a guerra é o meio das sociedades primitivas atingirem um fim político, seu ideal de autarquia e indivisão. Por outro lado, desde a perspectiva heracliteana adotada por Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro, a guerra é o elemento fundante em relação ao ser social tupinambá. Ainda que de maneiras diferentes, a guerra primitiva observada por estes três autores parece convergir, quanto a seus efeitos, em direção à existência do inimigo, do Outro não-aliado, promovendo a diferença e a multiplicidade. Já a guerra estatal-ocidental, conforme pensada por Deleuze e Guattari, ainda que conduzida pelos Estados de acordo com seus fins políticos particulares, vão na direção de suprimir o inimigo, de anular toda diferença reduzindo-a ao Um. As diferentes formas como a guerra é entendida no seio destas sociedades ameríndias e no seio das sociedades estatais-ocidentais revelam, portanto, maneiras divergentes de se relacionar com a diferença.Palavras-chave: guerra, inimigo, diferença, Pierre Clastres.
IntroduçãoSe Pierre Clastres estudou com tanto afinco a questão do poder nas sociedades ditas primitivas, seus estudos sobre a violência e, mais especificamente, a função da guerra nestas sociedades não são menos férteis. Seu artigo Arqueologia da violên-cia (CLASTRES, 2004), publicado originalmente em 1977, viria a romper o silêncio da etnologia ameríndia da época sobre o tema da guerra (Ibid., pp. 235-6), que em larga medida se devia a dois fatores: as sociedades que restavam já estavam, em sua maioria, em contato com o "branco" e sua "paz", o que lhes havia tirado a liberdade e autonomia da qual gozavam outrora; e por outro lado, quando estas sociedades eram objeto de estudos que enfocavam esta temática, acabavam sendo abordadas através de concepções prontas sobre as causas e o efeito de sua violência.No entanto, os registros da época do "descobrimento" relatam, em tom recriminatório, que as sociedades que aqui viviam eram belicosas e violentas. Essas impressões viriam a auxiliar a conformação de um ideário moderno a respeito do Estado, da política e da guerra, que tomaria corpo na teoria do Estado formulada por Thomas Hobbes, visto que essas sociedades "sem fé, sem rei e sem lei" pareciam, aos olhos europeus, estarem vivendo o que seria caracterizado por este pensador como um "estado de guerra". A visão da guerra como algo negativo, selvagem, atrasado não impedia, contudo, que em vários casos ela fosse "mantida por motivos estratégicos